sexta-feira, 1 de maio de 2009

UM SEQUESTRO SINGULAR

Fausto Valle*

Tudo fora bem planejado. Os três estavam na praça, esperando o momento certo de dar a partida para a execução do plano. A enfermeira, mulher de uns quarenta anos, magricela de óculos, ainda trabalhava na profiss
ão. Nunca se envolvera com nada ilícito. O baixinho meio efeminado fora também enfermeiro mas, sua vocação era a ilicitude. Sua atividade atual era vender cds piratas. Já o homem alto, de bigode mexicanês, que fumava um charuto, era um velho malfeitor, que tinha uma ficha policial de bom tamanho. Ele estava de pé, enquanto a mulher e o ex-enfermeiro estavam sentados em um banco. Os três conversavam mas, não tiravam os olhos do outro lado da rua, da porta do hospital, de onde saía e entrava gente a todo momento.

O plano levara meses para ser elaborado. A dificuldade maior para o homem de bigode, que era o mentor intelectual, foi encontrar os parceiros certos para a empreitada. A escolha veio depois de muita observação e de sagacidade na aproximação e convencimento dos futuros comparsas. Formado o trio, a escolha da vítima foi outra fase cuidadosa, com a ava
liação de todos os detalhes, incluindo a parte prática final, para que não houvesse erro.

Por fim, a mulher apareceu à porta do hospital. Fora à última consulta pré-natal, estava no final da gravidez. Dela se aproximou a enfermeira, com seu uniforme de trabalho, para não despertar suspeita. O hospital onde trabalhava era outro, distante dali.


“Para onde vai? Estou saindo do trabalho, posso dar-lhe carona” – ela disse.
A mulher não se surpreendeu, já havia visto aquela enfermeira nos corredores do hospital algumas vezes. Fazia parte do plano, tornar-se familiar e deixar-se ver pela vítima, naquele local. Por isso, a mulher grávida não estranhou a oferta de carona. Estava indo, por coincidência, para o mesmo bairr
o em que a enfermeira dizia morar. Juntas, atravessaram a rua e tomaram o carro estacionado ali perto, dirigido pelo homem de bigode, que lhe fora apresentado pela enfermeira como seu marido. Gentil, abriu-lhe a porta do carro, com um sorriso. O carro partiu. Numa motocicleta, vinha o segundo homem, o efeminado vendedor de cds, que passou à frente do carro e seguiu adiante, na mesma direção.

“A senhora se incomoda se pararmos ali, na casa de um amigo, para eu pegar alguns cds que ele me emprestou?”perguntou amável o homem de bigode. “Não, de forma nenhuma”. Haviam alugado uma casa para os fins propostos, em nome de algum desconhecido.
Foram recebidos com efusão pelo amigo e convidados a entrar. “Entra, dona, está cedo e há tempo para tomar um refresco!”A mulher olhou para a enfermeira, afinal era carona e não queria atrasar o casal. A enfermeira, sorridente, anuiu: “faz calor, um refresco vem na hora certa”. Entraram. Começava aí a segunda parte do plano. A primeira não teve nenhum percalço, tudo correu melhor do que o esperado.

O ex-enfermeiro morava só e aprestou-se a preparar um suco de laranja para os amigos e a caroneira grávida. Enquanto estava na cozinha, os outros dois ficaram conversando com a mulher, sentados à mesa, na sala. A gentileza dos novos amigos desfez qualquer resistência que pudesse haver, por parte da mulher, por estar ali, em boa intimidade, com pessoas que não conhecia. Veio o suco de laranja e o próprio dono da casa colocou um copo cheio à frente de cada um e pegou o seu próprio. Em brincadeira, um brinde foi proposto. Todos beberam, em clima de cordialidade, quase só de um gole, o suco de laranja, porque estavam com muita sede devido ao calor.

“Enquanto conversam, vou pegar os seus cds”, disse o ex-enfermeiro para o homem de bigode mexicano. “Fiquem à vontade em minha casa”, disse, piscando para a enfermeira. Era um sinal para que ela fosse ao quarto contíguo averiguar se o material preparado para a intervenção estava completo. Depois de andar um pouco pela casa, ir ao quarto contíguo, ela voltou e disse, com frase meio cifrada: “boa casa, está tudo certo, pronto para a função”.
Em poucos minutos, o sonífero que o ex-enfermeiro e vendedor de cds colocou no suco da mulher grávida começou a surtir efeito e ela se queixou, de modo constrangido – não queria atrapalhar os novos amigos – de um pesado sono. Mal se queixara, debruçou-se sobre a mesa. Ato contínuo, os três a colocaram no outro quarto, sobre uma mesa comprida, ao lado da qual havia material cirúrgico completo. Havia também um pacote de algodão e um vidro de éter, caso fosse necessário a complementação da anestesia, pois se preparavam, naquele momento, para a prática de uma cesareana.

A enfermeira magricela trabalhava em seu hospital como instrumentadora cirúrgica. O vendedor de cds trabalhara durante seis anos em um ambulatório de pequena cirurgia e tinha algumas habilidades operatórias. De maneira ordenada e rápida, descobriram o abdome da mulher, deitada de costas sobre a mesa e foram à pia, fizeram a lavagem das mãos, como fazem os cirurgiões, puseram as luvas e a cobriram com panos esterilizados. O homem de bigode ficou ao lado e estava encarregado de receber o recém-nascido. Abriram com destreza a barriga da mulher, abriram o útero e retiraram o produto que buscavam, um saudável menino que se esgoelou, ao se ver em campo aberto. Tudo foi feito como numa sala de cirurgia. O menino, após a secção do cordão umbilical, foi envolvido em panos esterilizados. Retirou-se a placenta e o abdome foi fechado com mestria, tudo muito rápido.

Toda a operação durou poucos minutos. A mulher dava sinais de que ia acordar.

“Vamos embora”- disse um deles, ajuntando o material e colocando tudo em um saco. “Depois que recebermos o dinheiro do alemão, vamos nos encontrar no lugar combinado para repartir o lucro. “Daqui meia hora, ligo para a polícia, dou o endereço e aviso que há uma mulher precisando de assistência médica”- atribuiu a si a tarefa o homem alto de bigode mexicano. E foram embora, o chefe e a enfermeira magricela, no carro, levando a criança e o vendedor de cds, pipocando rua acima, com a sua moto.
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*Fausto Valle, médico, poeta, contista, mora em Goiânia –GO. Editou recentemente o livro de contos "Além do Vão da Janela", onde mostra cada vez sua maestria como contista, talvez um dos três ou quatro meslhores do Brasil de hoje.

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