Fausto Valle*
Tudo fora bem planejado. Os três estavam na praça, esperando o momento certo de dar a partida para a execução do plano. A enfermeira, mulher de uns quarenta anos, magricela de óculos, ainda trabalhava na profissão. Nunca se envolvera com nada ilícito. O baixinho meio efeminado fora também enfermeiro mas, sua vocação era a ilicitude. Sua atividade atual era vender cds piratas. Já o homem alto, de bigode mexicanês, que fumava um charuto, era um velho malfeitor, que tinha uma ficha policial de bom tamanho. Ele estava de pé, enquanto a mulher e o ex-enfermeiro estavam sentados em um banco. Os três conversavam mas, não tiravam os olhos do outro lado da rua, da porta do hospital, de onde saía e entrava gente a todo momento.
O plano levara meses para ser elaborado. A dificuldade maior para o homem de bigode, que era o mentor intelectual, foi encontrar os parceiros certos para a empreitada. A escolha veio depois de muita observação e de sagacidade na aproximação e convencimento dos futuros comparsas. Formado o trio, a escolha da vítima foi outra fase cuidadosa, com a avaliação de todos os detalhes, incluindo a parte prática final, para que não houvesse erro.
Por fim, a mulher apareceu à porta do hospital. Fora à última consulta pré-natal, estava no final da gravidez. Dela se aproximou a enfermeira, com seu uniforme de trabalho, para não despertar suspeita. O hospital onde trabalhava era outro, distante dali.
“Para onde vai? Estou saindo do trabalho, posso dar-lhe carona” – ela disse.
A mulher não se surpreendeu, já havia visto aquela enfermeira nos corredores do hospital algumas vezes. Fazia parte do plano, tornar-se familiar e deixar-se ver pela vítima, naquele local. Por isso, a mulher grávida não estranhou a oferta de carona. Estava indo, por coincidência, para o mesmo bairro em que a enfermeira dizia morar. Juntas, atravessaram a rua e tomaram o carro estacionado ali perto, dirigido pelo homem de bigode, que lhe fora apresentado pela enfermeira como seu marido. Gentil, abriu-lhe a porta do carro, com um sorriso. O carro partiu. Numa motocicleta, vinha o segundo homem, o efeminado vendedor de cds, que passou à frente do carro e seguiu adiante, na mesma direção.
“A senhora se incomoda se pararmos ali, na casa de um amigo, para eu pegar alguns cds que ele me emprestou?”perguntou amável o homem de bigode. “Não, de forma nenhuma”. Haviam alugado uma casa para os fins propostos, em nome de algum desconhecido.
Foram recebidos com efusão pelo amigo e convidados a entrar. “Entra, dona, está cedo e há tempo para tomar um refresco!”A mulher olhou para a enfermeira, afinal era carona e não queria atrasar o casal. A enfermeira, sorridente, anuiu: “faz calor, um refresco vem na hora certa”. Entraram. Começava aí a segunda parte do plano. A primeira não teve nenhum percalço, tudo correu melhor do que o esperado.
O ex-enfermeiro morava só e aprestou-se a preparar um suco de laranja para os amigos e a caroneira grávida. Enquanto estava na cozinha, os outros dois ficaram conversando com a mulher, sentados à mesa, na sala. A gentileza dos novos amigos desfez qualquer resistência que pudesse haver, por parte da mulher, por estar ali, em boa intimidade, com pessoas que não conhecia. Veio o suco de laranja e o próprio dono da casa colocou um copo cheio à frente de cada um e pegou o seu próprio. Em brincadeira, um brinde foi proposto. Todos beberam, em clima de cordialidade, quase só de um gole, o suco de laranja, porque estavam com muita sede devido ao calor.
“Enquanto conversam, vou pegar os seus cds”, disse o ex-enfermeiro para o homem de bigode mexicano. “Fiquem à vontade em minha casa”, disse, piscando para a enfermeira. Era um sinal para que ela fosse ao quarto contíguo averiguar se o material preparado para a intervenção estava completo. Depois de andar um pouco pela casa, ir ao quarto contíguo, ela voltou e disse, com frase meio cifrada: “boa casa, está tudo certo, pronto para a função”.
Em poucos minutos, o sonífero que o ex-enfermeiro e vendedor de cds colocou no suco da mulher grávida começou a surtir efeito e ela se queixou, de modo constrangido – não queria atrapalhar os novos amigos – de um pesado sono. Mal se queixara, debruçou-se sobre a mesa. Ato contínuo, os três a colocaram no outro quarto, sobre uma mesa comprida, ao lado da qual havia material cirúrgico completo. Havia também um pacote de algodão e um vidro de éter, caso fosse necessário a complementação da anestesia, pois se preparavam, naquele momento, para a prática de uma cesareana.
A enfermeira magricela trabalhava em seu hospital como instrumentadora cirúrgica. O vendedor de cds trabalhara durante seis anos em um ambulatório de pequena cirurgia e tinha algumas habilidades operatórias. De maneira ordenada e rápida, descobriram o abdome da mulher, deitada de costas sobre a mesa e foram à pia, fizeram a lavagem das mãos, como fazem os cirurgiões, puseram as luvas e a cobriram com panos esterilizados. O homem de bigode ficou ao lado e estava encarregado de receber o recém-nascido. Abriram com destreza a barriga da mulher, abriram o útero e retiraram o produto que buscavam, um saudável menino que se esgoelou, ao se ver em campo aberto. Tudo foi feito como numa sala de cirurgia. O menino, após a secção do cordão umbilical, foi envolvido em panos esterilizados. Retirou-se a placenta e o abdome foi fechado com mestria, tudo muito rápido.
Toda a operação durou poucos minutos. A mulher dava sinais de que ia acordar.
“Vamos embora”- disse um deles, ajuntando o material e colocando tudo em um saco. “Depois que recebermos o dinheiro do alemão, vamos nos encontrar no lugar combinado para repartir o lucro. “Daqui meia hora, ligo para a polícia, dou o endereço e aviso que há uma mulher precisando de assistência médica”- atribuiu a si a tarefa o homem alto de bigode mexicano. E foram embora, o chefe e a enfermeira magricela, no carro, levando a criança e o vendedor de cds, pipocando rua acima, com a sua moto.
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*Fausto Valle, médico, poeta, contista, mora em Goiânia –GO. Editou recentemente o livro de contos "Além do Vão da Janela", onde mostra cada vez sua maestria como contista, talvez um dos três ou quatro meslhores do Brasil de hoje.
Tudo fora bem planejado. Os três estavam na praça, esperando o momento certo de dar a partida para a execução do plano. A enfermeira, mulher de uns quarenta anos, magricela de óculos, ainda trabalhava na profissão. Nunca se envolvera com nada ilícito. O baixinho meio efeminado fora também enfermeiro mas, sua vocação era a ilicitude. Sua atividade atual era vender cds piratas. Já o homem alto, de bigode mexicanês, que fumava um charuto, era um velho malfeitor, que tinha uma ficha policial de bom tamanho. Ele estava de pé, enquanto a mulher e o ex-enfermeiro estavam sentados em um banco. Os três conversavam mas, não tiravam os olhos do outro lado da rua, da porta do hospital, de onde saía e entrava gente a todo momento.
O plano levara meses para ser elaborado. A dificuldade maior para o homem de bigode, que era o mentor intelectual, foi encontrar os parceiros certos para a empreitada. A escolha veio depois de muita observação e de sagacidade na aproximação e convencimento dos futuros comparsas. Formado o trio, a escolha da vítima foi outra fase cuidadosa, com a avaliação de todos os detalhes, incluindo a parte prática final, para que não houvesse erro.
Por fim, a mulher apareceu à porta do hospital. Fora à última consulta pré-natal, estava no final da gravidez. Dela se aproximou a enfermeira, com seu uniforme de trabalho, para não despertar suspeita. O hospital onde trabalhava era outro, distante dali.
“Para onde vai? Estou saindo do trabalho, posso dar-lhe carona” – ela disse.
A mulher não se surpreendeu, já havia visto aquela enfermeira nos corredores do hospital algumas vezes. Fazia parte do plano, tornar-se familiar e deixar-se ver pela vítima, naquele local. Por isso, a mulher grávida não estranhou a oferta de carona. Estava indo, por coincidência, para o mesmo bairro em que a enfermeira dizia morar. Juntas, atravessaram a rua e tomaram o carro estacionado ali perto, dirigido pelo homem de bigode, que lhe fora apresentado pela enfermeira como seu marido. Gentil, abriu-lhe a porta do carro, com um sorriso. O carro partiu. Numa motocicleta, vinha o segundo homem, o efeminado vendedor de cds, que passou à frente do carro e seguiu adiante, na mesma direção.
“A senhora se incomoda se pararmos ali, na casa de um amigo, para eu pegar alguns cds que ele me emprestou?”perguntou amável o homem de bigode. “Não, de forma nenhuma”. Haviam alugado uma casa para os fins propostos, em nome de algum desconhecido.
Foram recebidos com efusão pelo amigo e convidados a entrar. “Entra, dona, está cedo e há tempo para tomar um refresco!”A mulher olhou para a enfermeira, afinal era carona e não queria atrasar o casal. A enfermeira, sorridente, anuiu: “faz calor, um refresco vem na hora certa”. Entraram. Começava aí a segunda parte do plano. A primeira não teve nenhum percalço, tudo correu melhor do que o esperado.
O ex-enfermeiro morava só e aprestou-se a preparar um suco de laranja para os amigos e a caroneira grávida. Enquanto estava na cozinha, os outros dois ficaram conversando com a mulher, sentados à mesa, na sala. A gentileza dos novos amigos desfez qualquer resistência que pudesse haver, por parte da mulher, por estar ali, em boa intimidade, com pessoas que não conhecia. Veio o suco de laranja e o próprio dono da casa colocou um copo cheio à frente de cada um e pegou o seu próprio. Em brincadeira, um brinde foi proposto. Todos beberam, em clima de cordialidade, quase só de um gole, o suco de laranja, porque estavam com muita sede devido ao calor.
“Enquanto conversam, vou pegar os seus cds”, disse o ex-enfermeiro para o homem de bigode mexicano. “Fiquem à vontade em minha casa”, disse, piscando para a enfermeira. Era um sinal para que ela fosse ao quarto contíguo averiguar se o material preparado para a intervenção estava completo. Depois de andar um pouco pela casa, ir ao quarto contíguo, ela voltou e disse, com frase meio cifrada: “boa casa, está tudo certo, pronto para a função”.
Em poucos minutos, o sonífero que o ex-enfermeiro e vendedor de cds colocou no suco da mulher grávida começou a surtir efeito e ela se queixou, de modo constrangido – não queria atrapalhar os novos amigos – de um pesado sono. Mal se queixara, debruçou-se sobre a mesa. Ato contínuo, os três a colocaram no outro quarto, sobre uma mesa comprida, ao lado da qual havia material cirúrgico completo. Havia também um pacote de algodão e um vidro de éter, caso fosse necessário a complementação da anestesia, pois se preparavam, naquele momento, para a prática de uma cesareana.
A enfermeira magricela trabalhava em seu hospital como instrumentadora cirúrgica. O vendedor de cds trabalhara durante seis anos em um ambulatório de pequena cirurgia e tinha algumas habilidades operatórias. De maneira ordenada e rápida, descobriram o abdome da mulher, deitada de costas sobre a mesa e foram à pia, fizeram a lavagem das mãos, como fazem os cirurgiões, puseram as luvas e a cobriram com panos esterilizados. O homem de bigode ficou ao lado e estava encarregado de receber o recém-nascido. Abriram com destreza a barriga da mulher, abriram o útero e retiraram o produto que buscavam, um saudável menino que se esgoelou, ao se ver em campo aberto. Tudo foi feito como numa sala de cirurgia. O menino, após a secção do cordão umbilical, foi envolvido em panos esterilizados. Retirou-se a placenta e o abdome foi fechado com mestria, tudo muito rápido.
Toda a operação durou poucos minutos. A mulher dava sinais de que ia acordar.
“Vamos embora”- disse um deles, ajuntando o material e colocando tudo em um saco. “Depois que recebermos o dinheiro do alemão, vamos nos encontrar no lugar combinado para repartir o lucro. “Daqui meia hora, ligo para a polícia, dou o endereço e aviso que há uma mulher precisando de assistência médica”- atribuiu a si a tarefa o homem alto de bigode mexicano. E foram embora, o chefe e a enfermeira magricela, no carro, levando a criança e o vendedor de cds, pipocando rua acima, com a sua moto.
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*Fausto Valle, médico, poeta, contista, mora em Goiânia –GO. Editou recentemente o livro de contos "Além do Vão da Janela", onde mostra cada vez sua maestria como contista, talvez um dos três ou quatro meslhores do Brasil de hoje.
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