Sombras e delírios
Nilto Maciel
Um dos grandes prosadores da atualiade brasileira
Acordei hoje com vontade de ler o novo livro de Simone Pessoa: Bolsa de mulher.
Fui à prateleira das publicações não lidas (são poucas, no momento) e o
agarrei, com luxúria. Caminhei até a sala de leitura, caí na poltrona e
pu-lo (o impresso de Simone) no colo. Mal me preparava para o delírio
matinal (inicio, toda leitura, de olhos fechados, em busca de
concentração e da consequente absorção da verdade transcendental, a
plenitude do esvaziamento mental, etc.), mal eu me afundava no túnel
escuro e sem fim do silêncio, o telefone zuniu, feito mil cigarras às
vésperas da morte. Aturdido, voei até o aparelho. É da casa do escritor
Nilto Maciel? Tive receio de estar a ouvir uma voz provinda da mais
abissal esfera. De onde fala? Sosseguei logo: Estou no Benfica. Seria
Simone? Sim. Não a cronista, a escritora, mas a estudante Simone Farias.
Tínhamos nos comunicado pela Internet, ela no desejo de me conhecer, eu
na intenção de me exibir. Já li o livro, mas estou com umas dúvidas. O
senhor pode me dar umas explicações? Sim, se estiver ao meu alcance.
Posso ir à sua casa? Só se for hoje. Quero saber se... Como se deu o big
bang ou por que o bang bang chegou ao fim? Riu e eu tive certeza de
ainda passar um bom dia na vida, mesmo que seja o último.
No meio da tarde (o sono pós-almoço se havia esboroado), Simone chegou.
Parecia vinda do Deserto de Alvord, mais vermelha do que o Sol. Sobre a
mesinha de centro repousavam três objetos: o belíssimo (que primor de
edição do Armazém da Cultura!) Bolsa de mulher, de minha amiga Simone Pessoa; uma velha edição de The pearl, de John Steinbeck (li, ainda adolescente, uma versão brasileira: A pérola); e a primeira ficção longa de Marília Arnaud: Suíte de silêncios.
A estudante pediu permissão para ver mais de perto, um a um, os três
porquinhos (os empoeirados entes). E me lembrou um lobo mau de saia. Ou
uma loba má. Eu me contentava com mergulhar neles (isto é, nela e nos
porquinhos) todos os sentidos. Folheou o conjunto de crônicas de Simone e
nada balbuciou. Interessou-se pela novela de Steinbeck e leu, em voz
alta, um trecho: “Kino awakened in the near dark. The stars still shone and the day had drawn only a pale wash of light in the lower sky to the east”. Largou-a logo e saltou para as páginas de Marília. De que cuidava?
Quase
nunca faço resumo de obras de ficção. Se me pedirem, nem sei como
proceder. Também não me avezei no direito da transcrição de fragmentos,
em resenhas ou artigos. Prefiro examinar o código verbal, as técnicas de
narrar, os tipos de personagem, o narrador, o ambiente, etc.
Apoderei-me de Suíte de silêncios e
me pus a parolar, sem qualquer método, como costumam fazer os
palestrantes para plateias de estudantes. A moça assestava em mim as
pupilas de âmbar-gris. Arrisquei-me a falar da obra de Marília Arnaud: O
leitor se depara, logo no início da peça, com o desnudamento da
narradora, ou seja, a identificação do narrador como ser feminino. E
aqui vai a primeira transcrição (necessária): “Se me faltassem as
lembranças, estaria disposta a mendigá-las, de esquina em esquina, prato
na mão”. E a quem é dirigida a narração? Com quem fala a narradora? Em
muitos romances e contos, o narrador-personagem se volta para um leitor
ideal ou imaginário. Em Suíte de silêncios, a protagonista se revela a
outro personagem (ausente ou em pensamento), a quem chama de “meu
amor”, “você”, etc. Logo na primeira página, faz a conexão de sua fala
(o narrado) com o ouvinte (narratário): “O passado, meu amor, é uma casa
sem portas nem janelas” (...). Por outro lado, quem é essa narradora? O
leitor vai, aos poucos, desvendando tudo, desde o nome (Duína),
passando por suas características físicas e psicológicas, seu passado e
seu presente, sem vexames, sem sustos, sem fissuras na “narração”. Nas
novelas de paredes finas, piso tosco e teto baixo, cada frase esconde
uma assombração: Sou fulano, moro em tal cidade, tenho tantos anos,
pratiquei isto e aquilo, etc. É tudo aparentemente claro.
Uma
das características de boa parte da literatura de confissão (do
narrador) é o coloquialismo. Refiro-me à narração na primeira pessoa,
uma das vigas da prosa de ficção, desde os primórdios. Há, porém,
escritores que procuram fugir dessa armadilha. O coloquial pode conduzir
à pobreza da expressão escrita, pelo uso exagerado de gíria e modismos.
Nesse caso, a obra se faz documento sociológico de interesse
idiomático, folclórico, histórico, etc. Marília, não. Seu dialeto é mais
elaborado, próximo da poesia ou da dicção poética: “O passado é uma
casa onde se escondem um fio de uma sonata de Bach e um riso
interrompido de menina”. A estudante me pediu licença para opinar: Não
lhe parece pedantismo isso? Não, não me parece. A boa literatura nunca é
pedante.
E
os diálogos, aquelas tradicionais falas que saciavam as histórias de
intermináveis capítulos, de tramas insondáveis, com discursos recheados
de metáforas e circunlóquios? Marília está liberta desse defeito. O
diálogo dela é interno ou indireto. Podado, como deve ser na boa técnica
da linguagem moderna. Simone me interrompeu: Não estou entendendo isso,
seu Nilto Maciel. Abri o tomo, aleatoriamente. Escutasse este trecho:
“Do outro lado da linha, alguém me indagava algo banal, e eu,
reconhecendo uma voz que não era a sua, alegava, num tom de
indisfarçável frustração, uma noite maldormida, uma enxaqueca ou um
resfriado” (...). Visse a parcimônia de palavras e a exuberância de
detalhes que um diálogo comum (arcaico) não consegue mostrar.
Simone
Farias parecia cansada de me ouvir. Eu, no entanto, não me continha,
porque, quando me ponho a falar de literatura, não consigo mais parar.
Então se trata de um bom romance? Sim, uma ótima narrativa made in Brazil.
Ao
iniciar outro tema (não escrevo prefácios para conduzir o leitor a um
sofá macio, mas para arrastá-lo, pelo pescoço (feito rês), ao matadouro;
não faço propaganda de livro, porque não sou livreiro ou editor, etc.),
ao passar a outro assunto, ouvi um gemido: Estou com sede, seu Nilto.
Só então tive compaixão daquela criança, tão castigada por mim, por meu
egoísmo de professor. Ofertei-lhe água da fonte, sombras e delírios. E
ainda lhe oferendei, por empréstimo, os três papiros sobre a mesa.
Sorriu e olhou para mim, muito agradecida. Traga-mos, quando os ler.
Fortaleza, 5 de setembro de 2012.
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