sexta-feira, 2 de novembro de 2012

FRANCISCO MIGUEL DE MOURA: O MENINO REENCONTRADO

   
O MENINO REENCONTRADO                                                         Daqueles dias quase tudo está perdido!
                                                         Gesto, palavras, fatos, visões e sonhos, amores
                                                         que  doíam e desejos que voavam.
                                                         Quem pode contar a história de Ciro?
        
Teresinha Queiroz*                                             A pergunta não lhe devolve a realidade presente.
                                                         (MOURA, 2004, pg.19)


O  trecho acima constitui o convite para a formulação de uma outra pergunta: Quem pode contar a história de Chico, do menino Chico? A pergunta e o anseio da resposta não têm o condão de nos devolver a realidade passada. Seguramente, não devolveu esse passado também ao escritor  Francisco Miguel de Moura quando ele escrever O menino quase perdido (MOURA, 2009) e não o devolveu certamente por que essa matéria mole e flexível que é o tempo o é igualmente duro e perdido e só pode ser reencontrado pelos artifícios da memória, da memória e cada um e da memória dos outros.

Isto posto, como poderemos reencontrar o menino, a menina perdidos em e olvidados ainda mais nos outros? A resposta parece simples: pelos fiapos de nossas próprias lembranças e pelas lembranças dos outros e ainda pelo acionar dos mais distintos registros e suportes que podem dizer, ao observador atento e interessado, de nós. Velhos álbuns de família, nossa roupinha de batismo, os presentes duráveis que guardamos, as cadernetas e os cadernos escolares, antigas cartilhas empoeiradas, os primeiros coeiros cuidadosamente guardados pela mãe tantos outros possíveis restos, cacos, fragmentos, resíduos que ativam a lembrança e nos fazem, no esforço para que não nos perdamos de nós mesmos, vislumbrar frações às vezes quase infinistesimais  do tempo e especialmente inventar e reinventar o tempo perdido.
Por que falar de invenção e reinvenção? Para adiantar que memórias são construções poéticas, são escritos de um tempo, portanto são camadas superpostas da história. E histórias, em qualquer tempo e lugar, são narrativas que se tecem de certezas e incertezas,  de fatos que podemos afirmar como acontecidos, conferindo-lhe um grau elevado de veracidade, mas igualmente de fatos possíveis, mas não seguramente acontecidos. A escrita, qualquer que seja ela, guarda em si esses desníveis e aproximações maiores ou menores com um real acontecido, porém quase todo perdido para nossa experiência do presente.

Memória, no caso, são escritas que se fazem segundo inúmeros limites: o do acesso ao acontecido é o menor deles. Memórias quando se querem como acontecidas, verdadeiras, consideram, como bem afirmou Bujyja Britto em suas Narrativas autobiográficas(1977), todas as conveniências pessoais, familiares, sociais e especialmente a vontade expressa de formatar uma imagem para a posteridade. Neste ponto, minha própria memória me põe em dificuldades e ameaça desviar-me do roteiro traçado, pois O menino quase perdido, de Francisco Miguel de Moura, guarda enorme distância desse painel bordado por Bujyja Britto.

O reencontro de Francisco Miguel com o menino Chico é de outra natureza. É de natureza poética. Dito isso, está visto que o livro é um produto artístico que toma a infância como tema. A infância do menino Chico e a infância de cada um de nós.

O tema da infância, recorrente no memorialismo e na lilteratura, tem se tornado um interesse também entre os historiadores, sobretudo em face do uso cada vez mais intenso do conceito de memória e de noções afins,especialmente entre os que se debruçam sobre a história contemporânea e, em particular, entre os que estudam a chamada história do presente.

Na literatura, o exemplo mais notável que me ocorre é de Jean-Paul Sartre que, em As palavras (1984), conta com agudo senso de humor e invejável ironia, a história de sua infância e de sua formação como escritor, sem dúvida, um dos maiores do séc. XX. Em fidelidade ao tropo lingüístico a que recorre – o irônico -  Sartre poetiza sua formação segundo dois recortes: o ler e o escrever. Como menino leitor, recria-se como um ator, um fingidor, representando-se em toda a infância, para o avô Charles Schweitzer - calvinista e professor de línguas – como um pequeno adulto de interesses eruditos e distantes do comum, com o que se fez crente o avô na genialidade do neto;  ao mesmo tempo, vivia  sua infância de freqüentador de cinemas populares, de consumidor de revistas em quadrinhos americanas, de que era um colecionador, e de voraz leitor de produtos voltados para os interesses infantis das  décadas iniciais do séc. XX, tudo propiciado pela mãe,companheira e cúmplice desses seus brincos de criança solitária. Sobre o escrever, chama a atenção nesse livro extraordinário a maneira Sartre trata a retomada do passado,  a necessidade de aprisiona-lo e sorve-lo outra vez, outras vezes, pelo consumo de sua escrita. Acompanhemos o autor ao se referir ao  seu ofício infantil  de escrever, que ele define ao mesmo tempo como clandestino e verdadeiro, ou seja, sem leitores, porém igualmente sem a obrigação de agradar. Olhando para o passado, já tendo dobrado a quadra das tormentas, para ele, a dos cinquenta anos, afirma:
[...] “por ter descoberto o mundo através da linguagem, tomei durante muito tempo a linguagem pelo mundo. Existir era possuir uma marca registrada, alguma parte nas Tábuas infinitas do Verbo; escrever era gravar nelas seres novos – foi a minha mais tenaz ilusão – colher as coisas vivas na armadilha das palavras: se eu combinava as palavras, o objeto enleava-se nos signos, eu o apanhava” [...] (SARTRE, 1984, p.132).

 

Às vezes, Sartre apenas observava as coisas, não depositava os seus achados no papel. Acumulavam-se as impressões, pensava ele, em sua memória. Na realidade, as esquecia. Entretanto, já pressentia o seu futuro papel – imporia nome às coisas(SARTRE, 1984, p.132).

Deixemos o pequeno Sartre, em seu devaneio literário, a observar os plátanos do Jardim de Luxemburgo de Paris da sua infância. Transportemo-nos para outras plagas. Viajemos, tomando a memória do adulto Francisco Miguel de Moura como nosso guia, para o Angico Branco, para Aroeiras do Itaim, para a Barra, para Sussuapara, para Rodeador, para Bocaina, para o Curral Novo, para o Jenipapeiro, para Conceição, para Picos e para tantos outros lugares a que nossas lembranças nos conduzirem, alagando com nossas saudades a aridez que o tempo impôs a esses começos de vida. Dexemos lampejar os fragmentos. Imponhamos sentidos a eles, pois é deles que se faz vida e história.  E assim Francisco Miguel de Moura o fez.

Sua escrita toma o fragmento como estratégia. Costura sua narrativa com fiapos de lembranças. Escava o tempo com uma colher dourada, tão ciosamente escondida de seu tio Antônio, ameaça permanecer à sua pequena posse. Abre cavoucos no chão seco, frechas que cavoucos  lhes vão permitir olhar para o outro lado, para outros mundos e, especialmente, olhar para dentro de si. Filosofia que criança, mesmo com a razão morando distante da razão do adulto, é pensador maior.  Diz no singular o que é plural, diz no individual o que é social. Diz de si, mas diz sobretudo de nós.

E aqui convido a todos para um saque, para um butim, para que nos aprofundemos nesse belo memorial. Afinal, quando o escritor transforma sua experiência em narrativa, o que ele faz é transpor a vida para a forma da arte. E ao transformar o cotidiano em produto artístico, este passa a ser de todos, pois a arte é para ser degustada no coletivo, é feita sobretudo para emocionar, para conferir beleza às coisas, para ajudar a viver da maneira mais plena.

O escritor Francisco Miguel de Moura trata de todas as infâncias, ao transformar, pela palavra, esta idade da vida em arte. Afinal, podemos encontrar em todas as infâncias, ou pelo menos em boa parte das infâncias ocidentais do último século – o apego à mãe e o medo de perde-la, a figura presente-ausente do pai, o pai como representação da razão, a mãe como o signo da emoção, a descoberta da desigualdade e da injustiça, a formação da consciência do corpo e de suas urgências, o susto com as rápidas mudanças físicas, as descobertas do amor e de suas múltiplas formas. Para significar  essa descoberta, trouxe de volta as meninas e meninas-moças de seu tempo, perfumadas romanticamente nos jardins do passado – meninas-flores – mas foi enfático principalmente ao recordar pedaços de pernas, braços nus, seios nascentes e... suprema e inesquecível visão – a primeira mulher nua.  Claro que todas vestidas da mais pura invenção! No entanto, como duvidar da verdade dos sentimentos, do prazer da descoberta do outro sexo, da atração e do desejo do menino e do homem?

Francisco Miguel de Moura, já adulto, registra esse mesmo sentimento, dá a ver essa antiga descoberta nos notáveis poemas Aqui, a moça e De novo, a moça, ambos publicados em Tempo contra tempo (MOURA, 2007, p.9 e 11). Imaginemos com ele:
                       
AQUI, A MOÇA

Há, sim, quem possa se livrar do tempo,
e dos seus males, mas por pouco, embora:
É quando então se arranja um passatempo
e ri do tempo enquanto o tempo chora.

Se a moça “mal-sentada” se demora
na calçada, sorrindo, por exemplo,
então se pede a Deus e até implora
que aquele espaço seja um novo templo.

Tempo não morre e suicídio ignora.
Mas se acaso morrer, renasce e enflora
na imagem da moça “mal-vestida”.

Sinal do bem,  “a  moça”  até se cora,
e nos remoça como fosse outrora.
Pois viva a moça, o renascer da vida!

DE NOVO, A MOÇA

Quero insistir que a moça “mal-sentda”
é o mais lindo dos quadros que conheço,
e aquele vestir pouco não tem preço,
faz a curva da idade abençoada.

Para os que vão embaixo da calçada,
vencer o tempo é esforço muito avesso.
E se a ilusão não muda de endereço 
pode  ajudar tão bem na caminhada.
       
Um sorriso, um olhar... E continua...
Tempo passante é sol, passado é lua.
E o futuro? Nem Deus sabe de nada.

O tempo é assim: nem novo nem tão velho...
Mas quem o vê  no retrato ou no espelho
Como se avista a moça na calçada?

Quero chamar a atenção para apenas dois aspectos.  Primeiro, para a multiplicidade de representações do tempo presente nos poemas e igualmente em O menino quase perdido: tempo mau, passatempo, tempo riso, tempo súplica, tempo eterno, tempo morte, tempo ressuscitado, tempo enflorado, tempo abençoado, tempo avesso, tempo ilusão, tempo passado, tempo natureza, tempo novo, tempo velho, tempo Deus, tempo futuro, o tempo com quadro persistente e recorrente da “mal-sentada”. E outros tempos que cabe ao leitor descobrir. Segundo aspecto:  o que faz renascer todas essas temporalidades? O tempo Eros que invadiu o ser na infância, aqui reconstituída também sob esse signo.

Vê-se que o menino quase perdido se fez homem. E se fez escritor. E como homem escritor nos conduz, neste livro e em outros de sua romancística como Os estigmas (1984),  Laços de poder (1991),  Ternura (1993) e D. Xicote (2005) pelos caminhos da vida e por suas errâncias, pelas migrações que marcam a trajetória de quase todos nós, pelo desafio do sair dos povoados e das pequenas cidades e enfrentar, e ter que vencer, nas capitais desses vastos Brasis e quiçá do mundo.

Francisco Miguel de Moura elabora uma síntese perfeita entre a imaginação infantil tal como tem sido representada na escrita ocidental erudita e na cultura popular, certamente indissociáveis, e a poética do literato ao reinventar essas vidas e também a sua.

Como não se emocionar, como não ser profundamente afetado ao reencontrar os medos mais primordiais da infância – medo de bicho, medo de escuro, de morrer afogado, de lobisomem, de eclipse,do fim do mundo, de apanhar do pai, de perder-se nos caminhos e não ser encontrado, medo de onça braba, de a mãe não voltar das desobrigas, de passar fome, de ser feio/feia?  Todos esses medos misturam cultura e natureza, causos contados por avós e tios, contos da carochinha, fábulas européias de séculos passados, leituras de velhos e ensebados livros infantis, narrativas de cordel, histórias de caçadores e pescadores, sabedorias populares e até conversas para boi dormir?  Como ignorar em nós, e no autor,  toda essa mistura de saberes travestida em memória? Como não sorrir interiormente de felicidade, de saudade e de autocomplacência de adulto para a criança que fomos ao recordar, nessas buscas com cavadores, necessariamente de madeira,  das botijas de ouro que poderiam estar escondidas em qualquer lugar, especialmente onde, em noites escuras,  borboleteavam ora um foguinho, ora uma luz insistente?  Como esquecer o “faz-de-conta” que dava início a todas as brincadeiras, brincadeiras cujo principal ingrediente era a fantasia compartilhada? Faz-de-conta que é um boi, que é um cavalo, que é dinheiro, que é uma quitanda, que é uma princesa, que é um palácio, que é uma carruagem, quando às vezes nem a abóbora havia? 

Afinal, escrever não é sobretudo brincar de faz-de-conta? Faz-de- conta que houve um menino Chico... Para dar corpo a esse faz-de-conta  ele fez literatura. Enredou palavras e frases, construiu significados, atribuiu valores, inventou outros mundos, acionou sentimentos, criou um campo – lugares, cenas, personagens, eventos, escolheu uma forma de enredo, adicionou pitadas de real  à sua imaginação. Fez literatura.

E como Humberto de Campos em suas Memórias ( 19..) fala de amor e de sofrimentos,  como  O. G. Rego de Carvalho de Ulisses entre o amor e a morte (1994) fez poesia na forma de prosa. Leu, escreveu, fantasiou, contou, cortou e nos convocou a abraçar esse menino, agora reencontrado, que magro, fraco, assustado e sensível crescia para exercitar seu melhor papel – o de notável escritor.

                                                           REFERÊNCIAS

           BRITTO, Bujyja.  Narrativas autobiográficas. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1977.
           CAMPOS, Humberto de. Memórias.
          CARVALHO, O. G. Rego de. Ulisses entre o amor e a morte. 8 ed. Petrópolis:Vozes, 1994.
          MOURA, Francisco Miguel de. D. Xicote. Teresina: [ s.n], 2005.
          MOURA, Francisco Miguel de. Laços de poder. Teresina: [ s.n], 1991.
          MOURA, Francisco Miguel de. O menino quase perdido. Teresina: [ s.n], 2009.
          MOURA, Francisco Miguel de. Os estigmas. Teresina: [ s.n], 1984.
          MOURA, Francisco Miguel de. Tempo contra tempo. Teresina: [ s.n], 2007.
          MOURA, Francisco Miguel de. Ternura. 2. ed. São Paulo: Livro Pronto, 2011.
          SARTRE, Jean-Paul. As palavras: história da formação de um dos maiores escritores do nosso tempo, contada com humor e ironia por ele próprio. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 
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*Teresinha Queiroz, professora do Departamento de Geografia e História e do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil - Universidade Federal do Piauí. Membro da Academia Piauiense de Letras

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