sábado, 5 de julho de 2014

FRANCISCO MIGUEL DE MOURA - NOVOS POEMAS

 Francisco Miguel de Moura*

A PALAVRA E O POETA



Entranhar-se na  palavra
Arrebentá-la até a morte,
Para o renascimento do poema.

Rasgar o travo da garganta,
Quebrar as traves corpo e alma,
Engolir todos os alfabetos,
Vomitar certezas, beber olhares
Pelos rios mares e cidades.

Cada palavra é um abismo,
Cada som uma nova história,
Como na música e na dança
Dos loucos e dos mansos.

Apunhalada a pedra de tropeço,
O poeta grita heureca! heureca!
Descobriu o mistério dos homens.
E transporta-se ao Olimpo
Porque o poema está perto.


CONSTRUÇÃO

                     

As mãos criam calos
E os olhos, lágrimas.
O estômago, seca e come o diário feijão.
Há que espantar, com pedras, os pássaros
Que venham roubar o brilho dos botões.
Há que chamar o vento e pedir ao sol
Calor e luz pra secar as palavras.

Não se faz um poema com dois paus
Como se arma uma armadilha vã.
Não se faz um poema em supetão.
Um poema precisa de anos a fio,
E da ajuda de velhos poetas passados.
Não se faz só com água, palavra e vontade,
É preciso ter força. E como é que ela vem?
Não se sabe nem donde, parece milagre.

Um poema é feito de suor, lágrimas, sangue
Em anos curado...  Mais sangue que alma,



MANHÃ E POEMA



Reverberar do alvor (e) ser,
viva a terra o direito de amar!
O cego vê, Deus se extasia.

O poeta alavanca palavras,
arreda nuvens,
destravando o olhar.

O poema silencia o trovão
quando o raio da palavra espedaça o ar.

A manhã se clareia para que a nau
trabalhe e acenda o peito de cada um.

Eis que o poema se desvirgina
e que vida e movimento se declaram
canção.



CRUELDADE



Nascer – alguém à beira do berço
sem um sorriso, de chegada;
morrer – sem olhos tristes, fundos,
mas consoladores, conformados;
viver sem um propósito sequer,
que seja o de amar sem ser amado.
A vida não é um lindo amanhecer,
nem no espelho – um espetáculo
como quem foge do calor do lar.

A vida será crueldade?

Cruel é um silêncio impositivo:
não ter a quem falar ou dizer “ai!”
Cruel é ter a boca e não poder beijar,
ouvidos ter e não poder ouvir,
de olhos abertos – nada ver, olhar...

Cruel é ser alguém e não saber amar.



DEPOIS DA MADRUGADA



Olhos de sono tirem a remela.
A vida é uma enseada enquanto vida,
enquanto bela.

Entre (m) velas,
abelhas, folhas, jardim, avatares.
Não se deixe (m) picar
de fome e boutades.
Um raio ilumina
a manhã... As borboletas lentas
e as que voam, enquanto há desalento,
tentam o poema...
E como voa (m)
em livres versos leite e mel!

O sereno sobe e some, em suma,
e o sol, divino apenas como a água,
gota a gota  cai sem demasia.

Até que o escuro consumido se evapore.



DESCONSTRUÇÃO



Eis o que perpassa!... Anda a construção
duma história sem nome nem cabeça.
Outros lavram seu pedaço de chão.
São traços de rosários invisíveis,
movimentos ágeis de artesãos
fazendo santos, anjos, deuses,
no consenso das noites e dos dias.

Minha reza não vale a ideologia
dispersa no abismo das vaidades,
trocas e bombas... Confusão! Cuidado!

Na fábrica, o silêncio não se mede,
Nem à sábia sensibilidade das mãos
nem à explosão criativa das estrelas.

Barulho e sinfonia aqui se irmanam:
desconstrução de um invisível deus.
__________________
*Francisco Miguel de Moura, poeta brasileiro, com 81 anos em atividade. Poemas inéditos que brevemente serão publicados em livro.

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