quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A BONDADE DOS BONS É INFINITA

Francisco Miguel de Moura*
Escritor brasileiro
        
      Certa feita, no consultório do dentista Dr. Raimundo Cerqueira, um dos seus clientes disse que cedeu um rim a seu irmão. Se não o fizesse ele morreria, possivelmente seria o único doador compatível. Então, minha mulher falou assim:

          – Você doou porque era para seu irmão, não foi?

          – Não, ele respondeu, dei porque gosto dele, é meu amigo. Principalmente porque ele é bom. 

          – Se fosse para um amigo que não seja seu parente, você doaria?

          – Daria do mesmo jeito, isto é, se fosse meu amigo e se fosse bom.  Seria um caso de generosidade difícil, rara, misturada com talvez mais outras qualidades.

    Alias, para começo de conversa, poderia dizer tudo e mais alguma coisa sobre os bons. Do mesmo jeito, sobre os maus, contra estes principalmente, que não vão ler, certamente, esta crônica. Nem por isto devemos ser injustos. A bondade está  dentro de cada um, não para esconder, mais para externar-se em boas ações. A bondade ou a maldade da pessoa compõem sua alma, não obstante, noutra parte, ter eu repetido a frase atribuída a Graciliano Ramos: “Se os meus defeitos se sumirem, deixarei de ser eu, tornar-me-ei noutro”, crio esta outra forma de dizer que a bondade é infinita: se a pessoa é boa expressa sua alma; se é má, da mesma forma, expressa o seu ser. Não sei é porque, hoje estou inclinado a pensar que os bons já  nascem, não se fazem, como o povo diz. Minha mãe cantava uma cantiguinha cuja letra assim expressava: 

            “Quem é bom já  nasce feito / quem quer se fazer não pode, / ainda que encubra as faltas, / ao mesmo tempo descobre.” 

    Meu pai, que tinha a mania de cantador de viola, olhando sempre as formas e principalmente para as rimas e estrofes dos versos, reclamava:

    – Mas Zefa, esta sua cantiga não está rimando.  A palavra “pode” não é rima para a palavra “pobre”.

    Pelo verso tradicional, realmente não há rima no verso que minha mãe cantou. Há apenas um som parecido, uma falsa rima. Mas o que me ficou foi o conteúdo, não a rima. E também a dúvida: Será  que se transmite a bondade por herança? Seria a bondade de Deus através da natureza? E por que Deus seria mau, dando ao mesmo tempo maldade à gênese dos maus?

    Esta minha peroração veio porque fiquei abismado (para usar um termo da linguagem de minha mãe) quando soube da atitude do empresário baiano Rudival Cohim Ribeiro de Freitas, radicado em Pernambuco, desde 1968, adotando nada menos que 34 crianças, sem nenhuma restrição, registrando-as como filhos, apesar de ter quatro filhas naturais. Os adotivos receberam o seu sobrenome Freitas e o de Souza de sua esposa (Vera Lúcia), antecedidos de Xavier, pois ele é admirador do Chico Xavier e professa a doutrina espírita. As crianças têm entre 4 meses e 10 anos e os chamam de pai e mãe. Elas passam o dia na escola, retornando à noite para casa. O empresário declara que tem uma despesa mensal de mais ou menos R$ 4.000,00 de acréscimo (com a inflação, se esta história fosse hoje, gastaria muito, muito mais...), cerca de R$40.000,00 ou coisa assim.

    Na época  acusaram o Sr. Rudival de estar promovendo-se com isto, ao que ele respondeu:
 
    – Se buscasse promoção, teria continuado no Rotary e seria arroz-de-festa das colunas sociais e da mídia.

    Fico pensando: Há  pessoas que preferem fazer doações a entidades, associações filantrópicas ou de caridade, campanhas de igreja, etc. sem chegar nem perto dos miseráveis. Outros, porém, como Rudival, fazem sua doação diretamente e preferem conjugar a parte material com a espiritual, que é representada pelo carinho e comunicação dos sentimentos sem pieguismo, apenas por paixão, por humanidade.  No caso desse empresário baiano, ele divide inclusive os bens de raiz, que seriam apenas de seus filhos naturais, com esses adventícios do coração, naturalmente pessoas deixadas ao leu pelos pais, no meio do mundo, às adversidades das ruas. Isto, sim, é que se chama dar, doar. É entrega mesmo. 

    Não acredito que as pessoas iguais a ele sejam infelizes. Ao contrário, parece-me que a felicidade não é uma abstração. Ela existe e o empresário a encontrou. 

    – “Feliz é aquele que consegue tornar mais pessoas felizes”– assim Karl Marx entra nesta história. 

           A expressão de K. M. serviu a outros rumos, inclusive aos que promoveram as revoluções socialistas, ao longo dos dois séculos passados, onde morreram milhares de pessoas, inclusive inocentes. Ao contrário, o nosso exemplo é de que podemos praticar o bem a um ser, sem necessariamente ter que infernizar os outros.  

    Há outro saber popular que diz que “os maus por si se destroem”. Pode-se crer que sim. Mas inevitável é a pergunta: 

          – Como se destroem tantos e ainda há  tanta maldade no mundo?  

          Infelizmente começo a crer que a bondade não pode ser transmitida por herança. Se pudesse, seria necessário que os bons se reproduzissem e os maus se destruíssem mesmo, como diz o vulgar ditado. Há  tanto mistério nesse campo que o melhor é não continuar a investigação para não confundir mais. A herança da bondade vem Deus, quanto à maldade dos maus não se sabe. Não podemos saber. Ao homem só origem das coisas boas foi dado saber. O mal tem outra origem que não é de Deus.  

Consola-me, entretanto, saber que os bons são mais inteligentes. A maldade nunca foi sinal de inteligência.  Quem age contra outra pessoa está  agindo contra si mesmo. E é por isto que não pode ser feliz. Há  aquela história da consciência tranquila. E a legião dos bons é e será sempre maior. Por isto o mundo vai rodando, rodando, e não sai dos eixos.

Também não adianta querer julgar os homens a priori. Ninguém é totalmente mau, ninguém é bom sem defeito.  Temos que nos louvar nas ações. Porque dos corações só Deus sabe. “Não julgueis e não sereis julgados”, lembremo-nos da Bíblia. Particularmente, tenho a impressão de que nenhum mau juiz é uma boa alma.

          Finalmente, se os bons são autênticos, nem sempre os maus o são. Às vezes, não o são intimamente, mas praticam alguma falta por vergonha, despeito, ou anseio de aparecer de qualquer forma. Precisamos viver com eles, conviver. E para conviver é necessário que, pelo menos, não sejam assassinos. Este é o maior crime: o pecado contra a vida. Para viver não é necessário que seja bom, mas é necessário que respeito à vida, inclusive a própria. De modo geral não amamos os suicidas, às vezes temos pena deles. Só.

           A maior bondade dos bons é respeitar a vida, por pior que ela esteja, ou seja. Minha mãe tinha sabedoria pra dar e vender. E ela me dizia:

           - Meu filho, “a pior sorte do mundo é melhor do que morrer”.

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