sábado, 16 de maio de 2009

A POÉTICA NORDESTINA DE ASCENSO FERREIRA


ASCENSO FERREIRA

Gilfrancisco *

Responsável pela organização dos dados biobibliográficos e a transcrição do poema “Maracatu”.

Francisco Miguel de Moura*
Responsável pela transcrição dos poemas “Filosofia” e “Oropa, França, Bahia”, conseguido em dois sítios da internete.

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Apoiado inteiramente no manancial rico do folclore nordestino, declamando e cantando seus próprios versos, Ascenso Ferreira escolhe para temas de seus poemas assuntos populares: festejos religiosos, lendas, acontecimentos da sua região. Esse poeta pernambucano se notabilizou pelo ritmo excelente dos seus versos, que evitam o resvalar para a prosa e para o lugar comum. Portador de uma pequena bibliografia, isso não impediu, contudo, que o poeta alcançasse uma popularidade extraordinária, de norte a sul do país. Ascenso morreu quatro dias antes de completar 70 anos, em 1965, e sua obra se perdeu, a partir daí, no mais terrível silêncio. Por isso continua desconhecido do público brasileiro, apesar do compositor e cantor Alceu Valença, responsável por sua redescoberta, ter musicado e gravado vários de seus poemas: Maracatu; Oropa, França e Bahia; Vou danado pra Catende, dentre outras.

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Ascenso Ferreira deixou obra escassa porém expressiva: Catimbó (1927, 2ª ed. 1929), Cana Caiana (1939); em 1951, publicou uma edição de luxo de Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém, acompanhada de um LP com melodias para os poemas reunidos (primeiro poeta brasileiro a gravar seus poemas em disco) e com prefácio de Manuel Bandeira. Em 1963, no Rio de Janeiro, teve editado Catimbó e Outros Poemas, com prefácio autobiográfico. No final de 1995, 32 anos depois da edição comercial mais recente, os poemas de Ascenso Ferreira foram finalmente relançados em cuidadoso trabalho da Nordestal Editora, dirigida pelo crítico e poeta pernambucano Juhareiz Correya, em co-edição com a Fundação de Arte de Pernambuco – Fundarte.

A nova edição dos poemas de Ascenso Ferreira, reproduz ilustrações de Carybé, Cícero Dias, Joaquim Cardozo e Luis Jardim, entre outros, com textos introdutórios, que já se tornaram clássicos, assinados por Manuel Bandeira e Sérgio Milliet. Catimbó, o primeiro dos três livros, é prefaciado por Ritmo Novo, um pequeno ensaio de Mário de Andrade. Cana Caiana tem um texto de apresentação assinado por Luis da Câmara Cascudo. Xenhénhém é apresentado por um artigo assinado por Roger Bastide.

Sua obra apresenta-se em duas fases: uma da época parnasiana, sob a égide do Grêmio de Palmares, sem grande marca, e a outra, a modernista, resultante dos contatos com elementos da massa rural. Ascenso Ferreira, integrou-se ao movimento modernista de 1922, através do grupo da Revista do Norte (PE), sem contudo, influenciar por nenhum dos grupos. Ou seja, do Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, ou do Verde-amarelo de Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia, nem igualmente da chamada ala futurista.

Joaquim Inojosa, teria sido, igualmente um dos incentivadores de Ascenso Ferreira no sentido de adotar o modernismo, mas a sua resposta não se fazia em termos de uma influência futurista. Foi à conferência do poeta paulista Guilherme de Almeida, pronunciada no Teatro Santa Isabel, em 1924 e a recitativa de seu poema “Raça”, abriu os olhos de Ascenso à possibilidade de novas estéticas. Mas, foi o poeta Benedito Monteiro quem maior influência exerceu na sua transformação, sem esquecer José Maria de Albuquerque Melo e Joaquim Cardozo. Desta forma, Ascenso cria um, estilo novo de poesia, resultado não só de seu tipo vivencial, como da profunda integração com a literatura oral do povo nordestino.

Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira é uma erupção direta do Nordeste, no Modernismo brasileiro. Seus poemas são verdadeiras rapsódias nordestinas, onde se espalha fielmente a alma ora brincalhona, ora pungentemente, no dizer do amigo, Manuel Bandeira. São poemas, são fala e canto, cuja unidade das composições proclamam a autenticidade de que também é feita a Poesia.

O poeta pernambucano se chamava, na verdade, Aníbal Torres. órfão do pai aos 6 anos, morto num trágico acidente, vitimado por uma queda do cavalo quando participava das festividades da cavalhada, teve em sua mãe, uma professora primária abolicionista, sua primeira mestra. Aos 13 já trabalhava no comércio na loja do padrinho, onde teve contato com viajantes e suas estórias, muito de sua infância estão em memoráveis poetas como em “Minha Escola”. Levado por um tio senador, vai para o Recife, onde se torna escriturário do Tesouro do Estado, em 1919.

O sentimento poético desabrocha nessa época, quando inicia a compor sonetos, baladas e madrigais, na pior tradição parnasiana, que reuniu em um pequeno livro “Eu Voltarei ao Sol da Primavera”, republicado em 1985 pelo governo do Estado de Pernambuco. Mas influenciado pelo espírito materialista do fim do século XIX, foram marcantes na sua formação. Daí ter idealizado escrever um poema cujo tema era uma nova revolta de anjos, para destronamento de Jeová.

Referindo-se a sua crença religiosa, quando argüido no “Testamento de uma Geração” de Edgard Cavalheiro, 1944, diz o seguinte: “Para ser sincero, devo confessar que ora acredito ora desacredito, o que não me priva de possuir um grande sentimento de admiração por toda fé sincera e desinteressada. Acredito num mundo melhor, que virá fatalmente após este sacrifício tremendo em que se debate a civilização em luta contra a tirania, pois a árvore da liberdade sempre floresceu regada por sangue e lágrima. A verdade tem sido uma norma inquebrantável que aos meus destinos tracei”.

Em 1917, com apenas 22 anos de idade, numa atitude radical, o poeta inexplicavelmente resolve mudar o nome de registro para Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira. Ascenso era o nome do avô materno e Ferreira reverencia o sobrenome da mãe. Em 1928 Ascenso trava um conhecimento pessoal com o autor da Paulicéia Desvairada e no ano seguinte se aproxima de vários intelectuais paulistas, como Cassiano Ricardo, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Anita Malfatti e Afonso Arinos.

Em 1945, Ascenso abandona a mulher, Stella, com quem se casaria em 1921, para viver em companhia de uma adolescente, Maria de Lourdes Medeiros, abrindo um novo divisor de águas em sua vida. Em 1951, o poeta fez sua quarta viagem ao Sudeste para o lançamento de seus poemas. Quatro anos depois quando participa ativamente da campanha de Juscelino Kubitschek para a presidência da República, a dupla identidade de Ascenso Ferreira já está inteiramente à mostra. Apesar da experiência modernista e de toda a consagração que mereceu, ele ainda é visto, essencialmente, como um poeta folclórico, pecha preconceituosa de que jamais se livrará.
Sua estréia no Rio de Janeiro, merece de Medeiros e Albuquerque, do Jornal do Comércio, uma crítica feroz em que destruía o “Catimbó”. Em contra partida, o livro mereceu de João Ribeiro, Manuel Bandeira, Nestor Vitor, Peregrino Junior, José Vieira, Álvaro Moreira, Carlos Dias Fernandes e Tristão de Athaide, louvores sem restrições. Dez anos depois, Ascenso Ferreira volta ao Rio e São Paulo levando seu novo livro Cana Caiana, onde o ambiente foi o mesmo acolhedor de outrora.

Catimbó, significa feitiço, coisa-feita, muamba, canjerê e também o conjunto de regras e cerimônias a que se obedece durante a feitura do encanto. Foi com este título, “Catimbó” que Ascenso Ferreira, torna-se um dos poetas mais expressivos no movimento modernista no nordeste. Mário de Andrade, escrevendo ao Diário Nacional, de 1927, a respeito do lançamento do livro Catimbó reconhecia que “só mesmo Ascenso Ferreira com este Catimbó trouxe pro modernismo uma originalidade real, um ritmo verdadeiramente novo”. “Catimbó é um poema do norte que aderiu à estética paulista e aderiu com vigor próprio e originalidade, buscando as fontes tradicionais do nosso povo”. Assim começa o pequeno artigo de João Ribeiro, publicado no Jornal do Brasil, em 11 de janeiro de 1928.

Catimbó e Cana Caiana, são duas obras importantes de primorosa poesia, e que ganhariam muito em ser gravadas pelo próprio autor, por quanto muitos de seus ritmos escapam aos ouvidos sulinos. É bem verdade que desde 1922, escrevia poemas de acentuada vinculação com o folclore. Ascenso canta com saudade o mundo que morre nos engenhos, substituído pela algidez da usina moderna. A lembrança da meninice junta-se ao sensualismo do branco senhor em relação às mulatas e ao senso de humor que surpreende no povo. Em tudo isso, perpassa o orgulho de nascer e viver na região nordestina, que haveria de prevalecer sobre as influências dos modernistas e remeter o poeta ao regionalismo do grupo pernambucano.

Com técnica erudita se alia a perfeita compreensão dos ritmos populares, ao humor do homem vivido e maduro se junta a ingenuidade e o sentimentalismo do caboclo, tudo numa conjunção espontânea de homogeneidade bem característica desse Brasil que se funde numa harmonia de regionalismo a completarem e enriquecerem alguns denominadores comuns extremamente sólidos. Rica por sua musicalidade, fortalecida pela liberdade de versificação, sem recuar a rima; rítmica como a linguagem do povo, sua obra...... Ou como diria Manuel Bandeira: “quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar os seus poemas não pode fazer idéia das virtualidades verbais neles contidas”.


MARACATU

Zabumbas de bombos,
Estouros de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás...
Loanda, Loanda, aonde estás?
Loanda, Loanda, aonde estás?
As luas crescentes
De espelhos luzentes,
Colares e pentes,
Queixares e dentes
De maracajás...
Loanda, Loanda, aonde estás?
Loanda, Loanda, aonde estás?
A balsa do rio
Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
Que nunca sonhou...
Loanda, Loanda, aonde estou?
Loanda, Loanda, aonde estou?

(Poema musicado por Alceu Valença LP, Cavalo de Pau, 1982)


FILOSOFIA

(A José Pereira de Araújo, “Doutorzinho de Escada”).



Hora de comer — comer!
Hora de dormir — dormir!
Hora de vadiar — vadiar!


Hora de trabalhar?
— Pernas pro ar que ninguém é de ferro!


(Publicado no livro Cana caiana, 1939).








"OROPA, FRANÇA E BAHIA"
(Romance)

Para os 3 Manuéis: Manuel Bandeira
Manuel de Souza Barros e Manuel Gomes Maranhão



Num sobradão arruinado,
Tristonho, mal-assombrado,
Que dava fundos prá terra.
( "para ver marujos,
Ttituliluliu!
ao desembarcar").


...Morava Manuel Furtado,
português apatacado,
com Maria de Alencar!


Maria, era uma cafuza,
cheia de grandes feitiços.
Ah! os seus braços roliços!
Ah! os seus peitos maciços!
Faziam Manuel babar...


A vida de Manuel,
qque louco alguém o dizia,
era vigiar das janelas
toda noite e todo o dia,
as naus que ao longe passavam,
de "Oropa, França e Bahia"!


— Me dá uma nau daquelas,
lhe suplicava Maria.
— Estás idiota , Maria.
Essas naus foram vintena
Que eu herdei da minha tia!
Por todo o ouro do mundo
eu jamais a trocaria!


Dou-te tudo que quiseres:
Dou-te xale de Tonquim!
Dou-te uma saia bordada!
Dou-te leques de marfim!
Queijos da Serra Estrela,
perfumes de benjoim...


Nada.
A mulata só queria
que seu Manuel lhe desse
uma nauzinha daquelas,
inda a mais pichititinha,
prá ela ir ver essas terras
"De Oropa, França e Bahia"...


— Ó Maria, hoje nós temos
vinhos da quinta do Aguirre,
uma queijadas de Sintra,
só prá tu te distraire
desse pensamento ruim...
— Seu Manuel, isso é besteira!
Eu prefiro macaxeira
com galinha de oxinxim!


"Ó lua que alumias
esse mundo de meu Deus,
alumia a mim também
que ando fora dos meus..."
Cantava Seu Manuel
espantando os males seus.


"Eu sou mulata dengosa,
linda, faceira, mimosa,
qual outras brancas não são"...
Cantava forte Maria,
pisando fubá de milho,
lentamente no pilão...


Uma noite de luar,
que estava mesmo taful,
mais de 400 naus,
surgiram vindas do Sul...
— Ah! Seu Manuel, isso chega...
Danou-se de escada abaixo,
se atirou no mar azul.


— "Onde vais mulhé?"
— Vou me daná no carrosé!
— Tu não vais, mulhé,
— mulhé, você não vai lá..."


Maria atirou-se n´água,
Seu Manuel seguiu atrás...
— Quero a mais pichititinha!
— Raios te partam, Maria!
Essas naus são meus tesouros,
ganhou-as matando mouros
o marido da minha tia !
Vêm dos confins do mundo...
De "Oropa, França e Bahia"!


Nadavam de mar em fora...
(Manuel atrás de Maria!)
Passou-se uma hora, outra hora,
e as naus nenhum atingia...
Faz-se um silêncio nas águas,
cadê Manuel e Maria?!


De madrugada, na praia,
dois corpos o mar lambia...
Seu Manuel era um "Boi Morto",
Maria, uma "Cotovia"!


E as naus de Manuel Furtado,
herança de sua tia?


— continuam mar em fora,
navegando noite e dia...
Caminham para "Pasárgada",
para o reino da Poesia!
Herdou-as Manuel Bandeira,
que, ante a minha choradeira,
me deu a menor que havia!


— As eternas naus do Sonho,
de "Oropa, França e Bahia"...


______________
*Gilfrancisco é jornalista, ensaísta, professor universitário, formado em Letras. Mora em Salvador - BA, onde nasceu.
*Francisco Miguel de Moura, escritor e bancário aposentado, mora em Teresina - PI, cidade do seu último destino.

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