domingo, 6 de novembro de 2011

VILEBALDO ROCHA: UM ÍCARO MODERNO



Deolinda Maques*




Reproduzo aqui o artigo de Deolinda Marques sobre os livros publicados do poeta picoense mais lido da atualidade. Porque ler Vilebaldo Rocha ou sobre ele nos é sempre enriquecedor!
"Em 2006, por ocasião do lançamento do 2º livro do poeta Vilebaldo Rocha – O Caçador de Passarinhos (2006), lembro-me de que ouvi comentários de que lhe tinham sugerido trocar o título da obra, por ser considerado “politicamente incorreto”, uma vez que a prática de caçar (matar) passarinhos, nos dias de hoje, é extremamente antiecológica. Ouvi o comentário e não me posicionei. Mas fiquei a pensar: pelo que eu conheço do cidadão Vilebaldo, ele jamais faria uma apologia à matança de animais silvestres, e que, talvez, o poeta quisesse apenas fazer um resgate da memória cultural da infância de tantos meninos (e meninas) do interior do Brasil que aprendiam com os mais velhos (avós, pais, tios, amigos) a atirar e a preparar armadilhas para prender e matar passarinhos. Essa prática se dava sem nenhum remorso e até povoava os sonhos e as fantasias da meninada que se sentia heroi, quando pegava (ou matava) o seu primeiro passarinho.
Mas o poeta Vila, que sabe o que faz, não mudou o título e lançou o livro no dia 7 de janeiro, no Terraço’s Bar, com grande festa para um “bom” público, tendo em vista que as atividades culturais em Picos sempre tiveram plateia seleta.
Depois que li o poema homônimo (que dá título à obra), entendi porque Vilebaldo não acatou a sugestão dada. Vi que menino caçador de passarinhos referido na obra não é um exterminador de espécies ameaçadas, nem mesmo um “inofensivo” atirador de baladeira. “...não era certeiro”, “nunca comera um coração de beija-flor” e “sempre voltava com a capanga vazia”. O menino “gostava de caçar passarinhos, / mas os passarinhos eram que o caçavam”. Na realidade, o menino (de Vilebaldo) não é um caçador de pássaros. É um caçador de sonhos. Portanto, o poema (assim como o título do livro) não tem nada de antiecológico. Sosseguem os ambientalistas!
De posse dessa certeza, e após reler Cacos de Vidros (s/d), pude perceber que o eu-lírico é o mesmo do poema “O Caçador de Passarinhos”, tendo em vista que o vocábulo “pássaro” e, sobretudo, seu correspondente popular “passarinho” são termos recorrentes nessa obra. Constatei ainda que, o uso desse lexema não é mera repetição. Constitui-se a grande metáfora de toda a obra do poeta picoense. O Pássaro/passarinho simboliza os desejos, os sonhos (voar) de um eu - lírico que, coincidentemente, tem muito a ver com o poeta, a pessoa Vilebaldo Nogueira Rocha.
O eu-poético não somente faz referência a passarinhos, em versos como: “Nos ninhos de passarinhos a beira das estradas” (CV – p. 11), “Um passarinho assustado pousou na varanda do quarto andar” (CV – p. 29) e “Veio leve e mansa feito morte de passarinho” (CV – p. 74), mas, sobretudo, se compara, se define como pássaro/passarinho/beija-flor, em versos como: “Meu olhar de passarinho acanhado” (CV – p. 28), “Sou passarinho e moro na gaiola do quarto andar” (CV – p. 29), “Sou beija-flor / que pousa nos teus lábios” (CV – P. 61). No entanto, percebe-se que não se trata de um pássaro livre. É um pássaro engaiolado, prisioneiro, acorrentado (“Prisioneiro de mim mesmo”; “Acorrentado por mim mesmo” CV – p. 52). Percebe-se ainda que o menino-passarinho, confessado na 1ª estrofe do poema “Canto de Arribação”, de Cacos de Vidros (s/d),
“Quando menino plantei asas em meu peito,
correr de encontro ao vento, verso, vela, mar, amor.
Mas o medo fez seu ninho na mente e no coração.
Virei ave de gaiola. Assum-preto-sofredor.” (CV – p. 26),
é o mesmo menino-caçador de passarinhos, que se transformou em poeta (Assum-preto-sofredor), cujo sonho não é mais apenas voar; é ser alegre, ser livre. A ideia de tristeza, solidão,
aprisionamento é representada pela imagem do pássaro triste (“triste como passarinho morto”. OCP – p. 15) e resumida magistralmente com a criação do vocábulo composto “Assum-preto-sofredor” – síntese de todas as dores e sofrimentos, vividos pelo eu-lírico.
Enquanto em Cacos de Vidros (s/d) há uma perceptível recorrência dos termos pássaro/passarinho, em O Caçador de Passarinhos (2006) (afora o poema homônimo, no qual esses vocábulos aparecem 7 (sete) vezes e o verso “que gostava de caçar passarinho” é repetido três), o lexema aparece uma única vez (no poema de abertura “Musgo”), quando o eu-lírico de define como “pássaro alimentando / a cria com a própria carne” (OCP – p.13). No entanto, outra palavra ganha destaque e passa a ser o tema central da obra: sonho. O eu-lírico, que em Cacos de Vidros (s/d) tinha o desejo de ser pássaro, de voar, chega a confessar-se um sonhador (“Eu sou o que sonha noite e dia” (OCP –p. 47), mas, em outros momentos, se revela descrente (”Ah! Se houvesse ainda quem colocasse / Sonhos embaixo de minha rede!!!” OCP – p. 22)) e deixa transparecer uma dúvida, uma angústia, um medo: “Sonhei que pobre não podia entrar no céu” (OCP –p. 30). O eu-poético, que teve seus sonhos embalados pelo rio Guaribas (“embalou meus sonhos” OCP – p. 16), se refere “Ao sonho de cada pessoa que parte” (OCP – p. 54) e se pergunta desiludido, angustiado: “Quem espalhou meus sonhos pelo chão?” (OCP – p. 30). Talvez por isso, o menino que dizia “gostar de caçar passarinhos”, que tinha a “Ilusão de ser feliz”, de “não sofrer” (OCP – p. 50), no fundo, no fundo, queria era ser um deles. Logo, foi caçado facilmente.
Essa leitura contínua comprova que o eu-poético de Cacos de Vidros (s/d), que se revela pássaro e cujo sonho é voar, tem continuidade em O Caçador de passarinhos (2006). No entanto, percebe-se que o homem-pássaro não é mais um sonhador (“O poeta já não é tão romântico e sonhador” CV – p. 12), que o seu sonho não é mais apenas ter asas e voar. O sonho do Ícaro, que coincidentemente é o mesmo do poeta Vilebaldo Rocha, se configura como um desejo de ver o renascimento do rio “sem gravata de cimento” (CV – p. 11), a serra novamente florida de pau-d’arcos, a praça com oiticicas, as acácias com cabelos grandes, o mundo sem fome, sem guerra; o fim de todas as mazelas sociais. Enfim, que tem esperança de dias melhores, marcados pela igualdade social e pela liberdade. Esse é o sonho do Ícaro moderno.
Assim sendo, os livros de Vilebaldo não podem ser lidos separadamente. Pois, uma leitura contínua da obra (ou melhor: uma leitura invertida) torna perceptível a repetição das palavras pássaro/passarinho e sonho e de suas imagens, bem como põe em evidência que a recorrência destes termos representa, consciente ou inconscientemente, os desejos de voar, ser livre. Resumindo: simbolizam um sonho de liberdade. Conclui-se, portanto, que, para uma melhor compreensão, a obra poética vilebaldina deve ser lida conjuntamente, para que possam ser percebidas essas recorrências, suas relações e simbologias. Outra recorrência temática da obra de Vilebaldo é o vocábulo “menino”. Mas essa já é outra história."
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*Deolinda Marques, escritora brasileira, professora de literatura, ensaísta, mora em Bocaina - PI.

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