sexta-feira, 3 de agosto de 2012

GERAÇÃO 83: REVIRAVOLTA CULTURAL,


12 de outubro de 2009 

Fábio Gonçalves*

Havia um agravante: o sinal de televisão não era captado na zona rural. Era o completo alheamento da realidade sócio-política e cultural do que acontecia além das fronteiras nativas.
A criatividade e alta produtividade na literatura, nas artes plásticas, na música e na vida cultural de Picos viveram um apogeu nos anos de 1982-83-84, período em que o País saía tensamente do período ditatorial (1964-1985), que cerceava as liberdades individuais e coletivas e proibia as manifestações de ordem política e, no contraponto, influenciava a criação intelectual, ainda submetida ao processo de censura para que se pudesse circular as idéias e pensamentos.
Desta época, se fizeram ouvir, entender ou discutir seus pensamentos e o modo como viam o mundo, personalidades como os escritores Francisco Miguel de Moura, Fontes Ibiapina, Ozildo Batista de Barros, Gilson Chagas, Francisco das Chagas Bezerra Rodrigues (Chico de Júlio), o cantor e compositor Odorico Leal de Carvalho, os artistas plásticos Tácito Ibiapina, Mundica Fontes e Maria Nazareth Rufino Maia, a Naza, dentre outros.
A contribuição daquela geração de picoenses foi importante para o processo de formação da sociedade. O progresso artístico denota as condições em que a sociedade vive e se encontra em determinada época e esta geração apesar das inúmeras dificuldades de ordem econômica e material se sobrepôs no seu tempo. Seus nomes serão gravados na História.

Destes escritores, a Literatura Piauiense aceitou os três primeiros e acolheu a sua produção para estudos posteriores: Chico Miguel, hoje aos 75 anos, Ozildo Batista, 52; e Fontes Ibiapina, falecido aos 65 anos, de enfarte, em 10 de abril de 1986. Eles têm suas obras estudadas e discutidas em disciplinas nos cursos de Letras e Pedagogia, nas universidades públicas e particulares piauienses. Um tremendo avanço para o que se produzia, sem essa intenção naquela época.
Os livros dos três picoenses estão catalogados e facilmente encontrados no maior acervo de livros do Estado, a Biblioteca Comunitária Carlos Castelo Branco, da Universidade Federal do Piauí [UFPI], em Teresina. São pesquisados cotidianamente por muitos, que chegam a fazer monografias de conclusão de curso sobre os autores.
No plano estadual, nesta época, brilhavam ainda as estrelas-guia de A. Tito Filho, presidente da Academia Piauiense de Letras, Herculano Moraes e Francisco Hardi Filho, com produção de livros importantes para a formação da literatura piauiense.
O terceiro livro de Hardi, De desencanto e de amor, de poesias, quebrou um ciclo de sete anos sem produção do professor. Foi lançado na mesma época que Etc. e Tal, de Ozildo; A Ferro e Fogo, de Gílson, e Bar Carnaúba, de Chico Miguel.

Neste mesmo período de três anos, o jornalismo viveu a sua primeira fase de efervescência político-cultural com o lançamento do jornal Voz de Picos e a retomada da circulação do Jornal de Picos, de linhas editoriais conflitantes e que fazia o leitor ter que ler os dois periódicos para entender as visões do noticiário.

Eram as reportagens, artigos e charges do Voz de Picos e em menor número, de modo modesto, no Jornal de Picos, avançados para o final da época ditatorial que o Brasil vivia e a cidade passava. Nesses periódicos se encontram memórias burlescas da ditadura, denúncias de descaso com as populações mais humildes, barbaridades cometidas pelos usurpadores do governo, e que causaram um tremendo sofrimento e muita revolta. E charges que provocavam boas risadas.

Além de panfletos apócrifos ou assinados contando as orgias, ilegalidades e imoralidades da elite dirigente e de seus afilhados. O assunto sexo deixou de ser tabu, como reflexo da onda sexo, drogas e rock in roll, lançada pelo menos treze anos antes, por jovens no Festival Woodstock, em 1969.

ARTE E VIDA

Se examinarmos o período (1982-83-84) haverá uma ênfase no reaviamento das fronteiras entre a arte e a vida cotidiana, como o livro de Gilson Chagas, sobre a vida vagabunda que o personagem por ele criado leva em Teresina e as mentiras que conta aos pais, em Picos; as músicas que explicam as angústias, dificuldades e o processo de exclusão que saem da voz de Odorico Carvalho ou as críticas e sermões do padre Alfredo Scháfller, que influenciou grupos de jovens católicos. Além de grupos musicais diversos que promoviam festas e bailes concorridos e animados para a apresentação de novas músicas e talentos.

Havia um vazio por falta de informações confiáveis das redes de televisão nacional que atingia a comunidade urbana, que mesmo assim não eram sintonizadas em Picos a maior parte do tempo. Na zona rural, a desinformação era completa: o alheamento da realidade sócio-econômica e cultural do País era gritante.

Uma opinião de Odorico Carvalho sobre aqueles tempos ilustra bem o que se fala aqui: “Gilson Chagas longe de quedar-se aos afagos da vitória, arrojou-se na luta muitas vezes insana de tentar vencer o mar de mediocridade e estagnação em que se encontrava a grande maioria dos jovens de sua geração”.

Gilson Chagas retornou à literatura nove anos após lançar o livro de poesias Curvas de Meu Caminho, em 1973. No romance A Ferro e Fogo, editado pela COMEPI, o funcionário do Banco do Brasil S/A dá a sua cota de contribuição para a formação de um público leitor e de uma consciência crítica que clama pela inclusão social como contrapartida à concentração de riqueza e poder nas mãos de uma parcela ínfima.

Seu colega de banco, Odorico Carvalho, ressalta esse papel e acolhe composição de Gilson Chagas em seus discos de vinil. Outra contribuição que chegou ao universo literário partiu do escritor e também bancário Francisco Miguel de Moura, o Chico Miguel, com o livro Bar Carnaúba. A obra é parte sensível do que anotou sobre a vida cotidiana da Praça Pedro II, em Teresina, para onde voltou depois de uma curta temporada no Rio de Janeiro.

Não estranhe esses intelectuais pertencerem aos quadros de instituições financeiras. Era lá que se concentrava a parte da elite intelectual e interessante do Brasil pensante. Era lá que pagavam os melhores salários na época. Maria Nazareth Maia Rufino, a artista plástica consagrada internacionalmente, também foi bancária nesse mesmo período.

Naza ilustrou a capa do disco de Odorico Carvalho (1983). Seus trabalhos passaram a ter uma importância maior na medida em que, por razões de matrimônio, se estabeleceu no exterior. Sua arte realista já foi exibida em importantes galerias e museus na América do Sul, América Central, América do Norte e na Europa. Seus quadros fazem parte da coleção de inúmeros líderes mundiais do segmento político, de entretenimento e de celebridades como o ex-presidente Bill Clinton, Ivana Trump, Brigitte Bardot, Fernando Henrique Cardoso e da presidência da Varig Airlines.

De projeção internacional, esse mesmo período produziu o artista plástico Tácito Ibiapina, com suas pinturas de paisagem que encantam. Tinha um “discípulo” do seu modo de pintar e ver as paisagens, José Brito, o Zé Cebola, morto precocemente em acidente automobilístico. A prima de Tácito, Raimunda de Moura Fontes tem nas artes plásticas um modo peculiar de ver a vida. (Veja reportagem nesta edição). Naquele período foi fundadora do Grupo Mutirão Arte Cultura, que seria o embrião da Academia de Letras da Região de Picos.

LIVROS:

Bar Carnaúba, publicado em 1983, é o quarto livro de Chico Miguel e o estabilizou como escritor. Tornou-o conhecido e admirado fora dos círculos piauienses. Foi ganhador do segundo lugar de concurso promovido por várias entidades e administrado pela Academia Piauiense de Letras (prêmio especial Odilo Costa, filho). Chico Miguel descreve Bar Carnaúba: “O livro é muito sentimento. É uma fase de minha poesia em que quero reatar minhas ligações profundas com a terra, o homem e o meio através das emoções”. Seu próximo livro Sonetos de Paixão só viria a ser publicado três anos depois.

Chico Miguel ressalta a dificuldade de se publicar livros. Em entrevista ao jornalista Raimundo Alves Lima, o Ral, do extinto jornal O Estado (sucedido pelo Meio Norte), explicita a contribuição da Secretaria de Cultura do Estado ao quadro geral da cultural piauiense: “Não foi muita, sinceramente. Ressalto os concursos literários e artísticos (os de artes plásticas), além do incentivo à cultura popular (cordel, por exemplo) como o que de melhor vem sustentando. Lamento que não se tenha feito ainda um concurso de crônicas, apesar de constar em lei, de 17.11.1961”.

Além de escritor, Chico Miguel também era editor da revista literária Cirandinha. A 10ª edição do periódico saudou a materialização do primeiro compacto em vinil de Odorico Carvalho. “A marca do sentimento vem do fundo da sua infância – todo homem é romântico naquela época. Ou então não exercitou seus bons sentimentos. Mas o compacto é, sobretudo, um grito da alma, uma coisa que ele tinha que fazer. E fez bem. Deu sorte. E deu felicidade aos ouvintes. Quem não gosta de uma boa música? Quem não gosta de um poema?” perguntas lançadas ao ar pela Cirandinha que tinha entre o seu público-leitor, o consagrado escritor Carlos Drummond de Andrade.

Drummond assim classificou Cirandinha: “uma bela revista, inovadora de propostas e experiências”. O exemplar lhes chegava às mãos via Correios, em sua residência no Rio de Janeiro.

O jornal Voz de Picos, editado por Ozildo Batista de Barros, dedicou generosa reportagem a Odorico Carvalho. Em trecho: “Após experiência de 10 anos como integrante-mor de importantes grupos musicais da terra, em que atuava como voz principal, Odorico tornou-se nome consagrado no cenário artístico picoense, com meritórias aparições em outros municípios do Piauí e alguns estados fronteiriços. O disco vem apenas ratificar uma indomável vocação musical, que no transcorrer de uma vida altamente fértil não se ofuscou nem foi relegada a planos inferiores ante o brilhantismo com que o moço intelectual comportou-se em suas múltiplas carreiras: quer na função de bancário, comunicador de rádio ou como jornalista”.

Ozildo era editor do jornal Voz de Picos e já tinha livro publicado – Quem manda na sua vida? (1977). Nesse período – 1982-1984 – lança outra obra Etc. e Tal com poesias inovadoras e tem outra trincheira: a política.

Os livros tinham um engajamento de temática social. E a literatura tinha um papel preponderante como aponta a jornalista e pesquisadora Márcia Denser: “Quem abre mão de suas raízes culturais está condenado á insignificância”.
A mestra pela PUC – SP (Pontifícia Universidade Católica), Denser, acredita que a “literatura só avança, se desenvolve e amadurece quando as obras são lidas, relidas, criticadas e discutidas”.
Ela observa esse choque entre o atual e aquele período: “Não pode prevalecer o presente estado de coisas, amorfo, anônimo e acrítico”. Não se vê pelo menos na superfície movimentos culturais, artísticos e musicais como os registrados no período de 1982-84.

No artigo Literatura aqui e agora, publicada na edição nº 7, de Cirandinha, em maio de 1981, Ozildo Batista de Barros profetizava: “Certamente daqui a vinte anos será ridículo um autor sair às ruas oferecendo o seu próprio livro, porque os piauienses passarão a freqüentar as livrarias (e estas passarão a existir) como freqüentam as padarias e os bares”.

A previsão não valeu para Picos. E para a maioria das cidades do interior piauiense. Infelizmente. Entretanto o autor continua produzindo obras como Socotó (2007). E é otimista e bem humorado com a atual situação de Picos, relacionada com os seus prognósticos de 1981: “Atualmente Picos já tem bares e padarias; teremos, sim, livrarias e bibliotecas”.

A FASE DA NOSSA VERVE CRIATIVA

...Nasce o Jornal de Picos [1982]. Fica sem circular por semanas até ser retomado em 1983, passando a ser semanário.

... Gilson Chagas, aos 32 anos, lança o romance A Ferro e Fogo, editado pela COMEPI [1982] .

... Raimunda de Moura Fontes, a Mundica Fontes, aos 36 anos, artista plástica e professora, participa da formação do Grupo Mutirão Arte Cultura [1982], que mais tarde viria a fundar a Academia de Letras da Região de Picos (ALERP).

...O poeta Raimundo Nonato da Silva, o Ranossil, aos 19 anos, lança A Solidão [1982].

...Francisco Hélio de Souza Valério, filho de militar do 3º BEC, lança aos 25 anos, o livro de poesias Escalda-Pés.

...Hélio Valério escolhe o poeta José Osvaldo Lavor de Lima para fazer a capa do livro [1982].

... Nasce o Voz de Picos, periódico influenciado pelo Pasquim, do Rio de Janeiro, de combate ao regime militar e às mazelas sociais, com denúncias e humor [1983] .

... O Voz de Picos é uma resposta do jovem escritor Ozildo Batista de Barros, aos 26 anos, ao Jornal de Picos, que criou e teve o projeto descontinuado. Ozildo já havia publicado dois livros Quem Manda na Sua Vida? [1977] e Etc. & Tal [1981] .

... Francisco Miguel de Moura, aos 50 anos, se estabiliza como escritor, depois de temporada de um ano, residindo no Rio de Janeiro. Volta e se estabelece em Teresina e trabalhando no Banco do Brasil S/A, de onde colabora com o Voz de Picos, e publica o livro Bar Carnaúba [1983].

... O livro de Chico Miguel obtém o segundo lugar em concurso e ganha o prêmio especial Odilo Costa Filho, promovido pela Academia Piauiense de Letras [APL].

... O cantor e compositor Odorico Carvalho lança o primeiro compacto simples, com duas músicas Voz do Coração e Mudanças, gravadas no Estúdio Mosch, pertencente a integrantes do Grupo Pholhas, de São Paulo, com tiragem de 1.000 unidades.

...Dois integrantes do Pholhas, Helio Santisteban (tecladista) e Oswaldo Malagutti (direção de estúdio) participam das gravações do disco de estréia de Odorico.

...A capa do disco foi desenhada pela artista plástica nascida em Santa Cruz do Piauí, com passagens para estudar e trabalhar por Fortaleza [CE], Brasília [DF], Recife [PE] e residente em Picos, Maria Nazareth Maia Rufino, a Naza, então com 28 anos, concursada do Banco do Brasil [1983].

...O padre austríaco Alfredo Schaffler, 42 anos, radicado em Picos, rompe as barreiras provincianas e lança pelas Edições Paulinas, o livro Sementes do Amor, incluído na coleção Coração a Coração, relatando em crônicas as reflexões do religioso à frente da Paróquia Nossa Senhora dos Remédios, dando ênfase ao homem do campo, a juventude e aos casais [1983].

.... Fora do ambiente de Picos, onde nasceu na zona rural, prospera a produção literária de Fontes Ibiapina, radicado em Parnaíba [PI], onde serve como juiz de Direito, escritor e professor. Fontes, aos 61 anos, lança o seu 12º livro, O Casório da Pafunsa [1982].

... Ele é irmão do poeta popular Antônio de Moura Ibiapina (Pebinha), primo do poeta e teatrólogo Leão Sombra do Norte Fontes e tio dos artistas plásticos Tácito Ibipiana e Mundica Fontes.

... Inspirado em Tácito Ibiapina, artista com telas expostas no Brasil e no exterior, aparecem os primeiros quadros de José Leal Brito, o Zé Cebola [1983].

... No Piauí, destaque para o lançamento do quarto livro do poeta Hardi Filho, também colaborador do Voz de Picos.

... O radialista Erivan Lima coloca no mercado o livro Por que não ver longe? depois de cinco anos de maturação. A capa e a ilustração ficaram por conta de Gracivalda.
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 *Fábio Gonçalves, jornalista, editor da "Revista Mais Foco" e também do site do mesmo nome. Nasceu em Picos, atualmente mora em São Paulo.

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