segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Teodoro Bicanca: o marco do modernismo na literatura piauiense.

CASTELO BRANCO, Renato Pires. Teodoro Bicanca. São Paulo: Instituto Progresso Editorial S.A., 1948. 237p.

Francisco Miguel de Moura Júnior[1]
 
Renato Pires Castelo Branco nasceu em Parnaíba/PI (1914) e faleceu em São Paulo (1996). Graduou-se em Direito (1937), pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, mas se notabilizou como publicitário, sendo o único latino-americano a ocupar os cargos de vice-presidente, nos Estados Unidos, e Presidente, no Brasil, de uma das maiores agências de publicidade americana, a J.W. Thompson. Foi ainda, professor, historiador, cronista, ensaísta, poeta, romancista e Membro da Academia Piauiense de Letras, tendo publicado 25 livros. Entre os romances estão A Ilha Encantada (1992), o Rio Mágico (1987), O Planalto (1985), Senhores e Escravos (1984), A Conquista dos Sertões de Dentro (1983), Rio da Liberdade (1982), Teodoro Bicanca (1948) e Armazém 15 (1934). Saudado pela crítica ao lado de escritores como Jorge Amado, Afonso Schimidt, Paulo Duarte e Ledo Ivo, o romance premiado Teodoro Bicanca (Prêmio do “Clube do Livro”), foi indicado como o mais relevante por introduzir a ficção moderna na literatura piauiense.

O romance Teodoro Bicanca conta a história do mulato cearense Teodoro. Damião, pai de Teodoro, era dono de terra, gado e roçado no sertão do Ceará, mas após uma longa estiagem se vê obrigado a abandoná-la. Durante a viagem morrem a mãe e os dois irmãos, Serafim e Raimunda. Damião e Teodoro, com apenas seis anos, seguem para o Piauí fugindo da seca.

Damião chega às terras do coronel Damasceno, latifundiário, que o acolhe como agregado para trabalhar na roça. Após ter seu plantio queimado pelo negro Crispim, amigo retirante, cai em profunda depressão e mesmo impossibilitado de trabalhar é deslocado para a extração da cera da carnaúba. As condições degradantes agravaram sua saúde e ele acaba por falecer. Teodoro, por sua vez, recebe cuidados e proteção de Siá Ana, curandeira da região, desde quando chega à fazenda. Vive a descoberta do amor por Piedade, quando ela ainda tinha “onze para doze anos” (pág. 112), filha de Malaquias, capanga de Damasceno, que ameaça matá-lo ao descobrir o namoro. Siá Ana aconselha-o a partir para Parnaíba.

Em Parnaíba, Teodoro ganhava a vida vendendo água, mas a felicidade só veio quando finalmente tornou-se vareiro na barca da Companhia Fluvial Caramuru, que fazia linha de Parnaíba a Teresina. Nessa fase, conheceu a “liberdade” e a “fama”, ganhou apelido: “bicanca”, por dar chutes de bico na bola, jogando futebol na beira do rio. Numa dessas partidas de futebol, Teodoro conheceu Abedias, filho do guarda-livros (contador) Tenório, que mais tarde tornar-se-ia advogado com inclinação comunista. Por meio dele, Teodoro começava a ganhar consciência política e juntos criam o Sindicato dos Vareiros e Estivadores do Rio Parnaíba. O sindicato, apesar de não fazer manifestações violentas, sofre dura repressão das autoridades constituídas e é dissolvido. Os principais líderes do movimento, Abedias, Teodoro, Zé Peinha, Boca de Sovaco e Leôncio são presos e depois libertados, com exceção de Abedias que é mandado para o Rio de Janeiro. Teodoro, após ser solto, com os ferimentos provocados em um acidente ocorrido na barca Caramuru e agravados com os espancamentos da polícia, resolve partir de Parnaíba rumo à fazenda Areia Branca, a procura de Siá Ana para curar-lhe o corpo, seu elo com a religiosidade mítica, e Piedade para curar-lhe a alma.

Renato Castelo Branco, nos seus 41 capítulos (sem títulos) e 237 páginas, constrói um romance tipicamente, mas não intimamente, regionalista. Numa classificação simplista, pois meramente espacial, o romance Teodoro Bicanca abrange três regiões: a semi-árida, no Ceará, as matas de cocais e a cidade de Parnaíba, no Piauí. A síntese de traços específicos dessas regiões e a vida comum a todos os homens é que irá caracterizá-lo como pertencente à segunda fase do modernismo. Percebe-se, com a leitura do romance, que a força motriz é a consciência do subdesenvolvimento e o grande assunto é o ser humano.

Em Teodoro Bicanca, Renato Castelo Branco não esgota toda a problemática da “grande seca”, mas registra suas consequências retratadas, principalmente, na vida de uma família de retirantes e a migração desta do Ceará para o Piauí. “A seca levara sua testada candente até os barrancos do Parnaíba. Também ela fora beber a água do rio poderoso, com os retirantes do Ceará” (p. 23). Teodoro Bicanca reflete, assim, o interior do Piauí, não o semi-árido, mas as matas de cocais do baixo Parnaíba piauiense, local onde os retirantes teriam a salvação.

Nesse cenário dos latifúndios, trabalhadores rurais e agregados nos vales do Rio Parnaíba, o narrador questiona o poder. Só o rio era, verdadeiramente, poderoso: “dominavam o vaqueiro, dominavam os caboclos das roças, dominavam os coronéis” (pág. 11). Siá Ana também tinha poder, nas curas e rezas, “um poder quase tão grande quanto o do coronel” (pág. 47). Para Teodoro, Noé, com sua arca, era o único homem capaz de dominar o rio. E se vencia o rio, venceria também os coronéis. Por isso, Teodoro sonhava ser vareiro, assim como Noé, mas enquanto isso sobreviveria se ficasse sob a proteção de Siá Ana, com “suas curas milagrosas, mezinhas e benzições” (pág. 47).

As referências de poder para Teodoro não era o pai, este foi vencido pela seca, que lhe roubara tudo: mulher, filhos, terra, gado e até o amor próprio. Foi vencido também pelo coronel Damasceno, “único bom ‘reprodutor’ da fazenda Areia Branco” (pág. 70), que comandava uma complexa estrutura de classes em suas fazendas: a esposa resignada, D. Hortência, a amante Onorina, filhos bastardos, flagelados que recebiam, quando não eram enxotados, rapadura e farinha para matar a fome, empregados mal remunerados e agregados que podiam plantar na vazante. Estes recebiam mantimentos, ferramentas e sementes para o plantio. Em troca teriam que pagar com um terço do melhor roçado e os outros dois terços eram obrigados a vender para o coronel, que descontava o custo do adiantado. Como nunca conseguiam pagar as dívidas os agregados eram reduzidos a condição análoga à de escravos.

A consciência de que as pessoas deveriam ser tratadas como um fim em si mesmo, e não como um meio (objetos) nunca foi alcançado por Damião ou Crispim, que mesmo em situação de extrema pobreza, consideravam o coronel Damasceno “um homem bom” (pág. 28). Sabiam que eram explorados e para isso só havia duas alternativas: a resignação ou fugir. Damião resignara-se e morre, Crispim foge e acaba como mendigo alcoólatra em União. Não há revolta entre os agregados. São personagens inertes, incapazes de mudar a dura realidade.

A sensibilidade para reconhecer as misérias de um sistema injusto veio com a convivência de Abedias: “O mundo começava a se apresentar a seus olhos de modo diferente” (pág. 135). A fome e a miséria era uma doença social. Havia coronéis nos campos e nas cidades. O poder estava por todo lugar. O mundo resumia-se em oprimidos e opressores, “o mundo do bicho maior comendo o menor” (pág. 135).

O “despertar” de Teodoro trouxe dor e esperança. Um dia “todos os homens seriam iguais”, como dizia Abedias, o “doutor comunista”, “não haveria mais coronel e agregado” (pág. 222). Um dia voltaria para Piedade. O mundo, para Teodoro, já não era mais o mesmo. Conhecera a “liberdade”, o “amor” e o ódio. Realizara o sonho de ser vareiro, mas para a sociedade não passava de um “porco d’água”. Teodoro Bicanca voltara a ser retirante.

Teodoro Bicanca é um romance intenso que nos oferece uma imagem objetiva e concreta da realidade, com uma preocupação acentuada na problemática sócio-política e existencial do seu tempo. Destacando-se pelo pioneirismo ao tratar da condição análoga à de escravo dos trabalhadores rurais do Piauí, realidade só oficialmente reconhecida pelo Brasil em 1995 e ainda presente nos dias de hoje. Lembrando que a primeira denúncia dessa situação ocorreu na década de 1960 pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Renato Castelo Branco tratou a seca como ponto de partida para a análise das condições degradantes e restrições à liberdade do trabalhador, na cidade ou no campo. Assim, debruçou-se na estrutura social rígida estabelecida pelos coronéis, senhores de carnaubais e fazendas de gado na zona rural do Piauí, sem deixar de retratar a família patriarcal da zona urbana de Parnaíba, de tradição secular, revelando toda a simbologia de uma sociedade estagnada em seus problemas provincianos.

Para alcançar seus objetivos o narrador não procurou fazer um tratado sociológico ou um relato capaz apenas de reproduzir fatos, mas fez literatura, sem deixar de mostrar sua indignação com a pobreza e desigualdades sociais. Teodoro Bicanca tem estrutura e linguagem tradicionais, visto que retrata o Piauí da década de 30. Para isso, explorou através da linguagem literária as sensações e os sentimentos, utilizando-se de uma linguagem denotativa, clara, concisa, e que transita entre diferentes níveis de expressão, destacando a coloquial e a regional sem perder o equilíbrio e a consistência.

Teodoro Bicanca é uma obra conservadora na sua estrutura, mas inovadora na sua temática, ao menos para a literatura do Piauí, ao abordar o trabalho escravo e as condições degradantes dos trabalhadores da zona rural e urbana piauienses, daí sua importância e por isso representa um marco do modernismo na literatura piauiense, devendo ser lido por todos como forma de compreensão da identidade cultural de seu povo.


[1] Francisco Miguel de Moura Júnior. Graduado em Direito (UFPI). Pós-graduado em Direito Eleitoral (UNISUL/SC), Direito e Direito Processual do Trabalho (UNIDERP/MS), Pós-graduando em Formação de Professores para a Educação Superior Jurídica (UNIDERP/MS) e graduando em Ciências Contábeis (FAP Teresina).

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...