CASTELO BRANCO, Renato Pires. Teodoro Bicanca. São Paulo: Instituto Progresso Editorial S.A., 1948. 237p.
Francisco
Miguel de Moura Júnior[1]
Renato Pires Castelo Branco nasceu em Parnaíba/PI (1914) e faleceu em São Paulo (1996). Graduou-se
em Direito (1937), pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do
Brasil, no Rio de Janeiro, mas se notabilizou como publicitário, sendo o único
latino-americano a ocupar os cargos de vice-presidente, nos Estados Unidos, e
Presidente, no Brasil, de uma das maiores agências de publicidade americana, a
J.W. Thompson. Foi ainda, professor, historiador, cronista, ensaísta, poeta,
romancista e Membro da Academia Piauiense de Letras, tendo publicado 25 livros.
Entre os romances estão A Ilha Encantada
(1992), o Rio Mágico (1987), O Planalto (1985), Senhores e Escravos (1984), A
Conquista dos Sertões de Dentro (1983), Rio
da Liberdade (1982), Teodoro Bicanca
(1948) e Armazém 15 (1934). Saudado
pela crítica ao lado de escritores como Jorge Amado, Afonso Schimidt, Paulo
Duarte e Ledo Ivo, o romance premiado Teodoro
Bicanca (Prêmio do “Clube do Livro”), foi indicado como o mais relevante
por introduzir a ficção moderna na literatura piauiense.
O romance Teodoro Bicanca conta
a história do mulato cearense Teodoro. Damião, pai de Teodoro, era dono de
terra, gado e roçado no sertão do Ceará, mas após uma longa estiagem se vê
obrigado a abandoná-la. Durante a viagem morrem a mãe e os dois irmãos, Serafim
e Raimunda. Damião e Teodoro, com apenas seis anos, seguem para o Piauí fugindo
da seca.
Damião chega às terras do coronel Damasceno, latifundiário, que o acolhe
como agregado para trabalhar na roça. Após ter seu plantio queimado pelo negro
Crispim, amigo retirante, cai em profunda depressão e mesmo impossibilitado de
trabalhar é deslocado para a extração da cera da carnaúba. As condições
degradantes agravaram sua saúde e ele acaba por falecer. Teodoro, por sua vez, recebe
cuidados e proteção de Siá Ana, curandeira da região, desde quando chega à
fazenda. Vive a descoberta do amor por Piedade, quando ela ainda tinha “onze
para doze anos” (pág. 112), filha de Malaquias, capanga de Damasceno, que
ameaça matá-lo ao descobrir o namoro. Siá Ana aconselha-o a partir para
Parnaíba.
Em Parnaíba, Teodoro ganhava a vida vendendo água, mas a felicidade só
veio quando finalmente tornou-se vareiro na barca da Companhia Fluvial
Caramuru, que fazia linha de Parnaíba a Teresina. Nessa fase, conheceu a “liberdade”
e a “fama”, ganhou apelido: “bicanca”, por dar chutes de bico na bola, jogando
futebol na beira do rio. Numa dessas partidas de futebol, Teodoro conheceu
Abedias, filho do guarda-livros (contador) Tenório, que mais tarde tornar-se-ia
advogado com inclinação comunista. Por meio dele, Teodoro começava a ganhar consciência
política e juntos criam o Sindicato dos Vareiros e Estivadores do Rio Parnaíba.
O sindicato, apesar de não fazer manifestações violentas, sofre dura repressão
das autoridades constituídas e é dissolvido. Os principais líderes do movimento,
Abedias, Teodoro, Zé Peinha, Boca de Sovaco e Leôncio são presos e depois
libertados, com exceção de Abedias que é mandado para o Rio de Janeiro. Teodoro,
após ser solto, com os ferimentos provocados em um acidente ocorrido na barca Caramuru
e agravados com os espancamentos da polícia, resolve partir de Parnaíba rumo à
fazenda Areia Branca, a procura de Siá Ana para curar-lhe o corpo, seu elo com
a religiosidade mítica, e Piedade para curar-lhe a alma.
Renato Castelo Branco, nos seus 41 capítulos (sem títulos) e 237 páginas,
constrói um romance tipicamente, mas não intimamente, regionalista. Numa
classificação simplista, pois meramente espacial, o romance Teodoro Bicanca abrange três regiões: a
semi-árida, no Ceará, as matas de cocais e a cidade de Parnaíba, no Piauí. A síntese
de traços específicos dessas regiões e a vida comum a todos os homens é que irá
caracterizá-lo como pertencente à segunda fase do modernismo. Percebe-se, com a
leitura do romance, que a força motriz é a consciência do subdesenvolvimento e
o grande assunto é o ser humano.
Em Teodoro Bicanca, Renato
Castelo Branco não esgota toda a problemática da “grande seca”, mas registra suas
consequências retratadas, principalmente, na vida de uma família de retirantes
e a migração desta do Ceará para o Piauí. “A seca levara sua testada candente
até os barrancos do Parnaíba. Também ela fora beber a água do rio poderoso, com
os retirantes do Ceará” (p. 23). Teodoro
Bicanca reflete, assim, o interior do Piauí, não o semi-árido, mas as matas
de cocais do baixo Parnaíba piauiense, local onde os retirantes teriam a
salvação.
Nesse cenário dos latifúndios, trabalhadores rurais e agregados nos vales
do Rio Parnaíba, o narrador questiona o poder. Só o rio era, verdadeiramente,
poderoso: “dominavam o vaqueiro, dominavam os caboclos das roças, dominavam os
coronéis” (pág. 11). Siá Ana também
tinha poder, nas curas e rezas, “um poder quase tão grande quanto o do coronel” (pág. 47). Para Teodoro, Noé, com sua
arca, era o único homem capaz de dominar o rio. E se vencia o rio, venceria
também os coronéis. Por isso, Teodoro sonhava ser vareiro, assim como Noé, mas
enquanto isso sobreviveria se ficasse sob a proteção de Siá Ana, com “suas
curas milagrosas, mezinhas e benzições” (pág. 47).
As referências de poder para Teodoro não era o pai, este foi vencido pela
seca, que lhe roubara tudo: mulher, filhos, terra, gado e até o amor próprio.
Foi vencido também pelo coronel Damasceno, “único bom ‘reprodutor’ da fazenda
Areia Branco” (pág. 70), que comandava uma complexa estrutura de classes em
suas fazendas: a esposa resignada, D. Hortência, a amante Onorina, filhos
bastardos, flagelados que recebiam, quando não eram enxotados, rapadura e
farinha para matar a fome, empregados mal remunerados e agregados que podiam
plantar na vazante. Estes recebiam mantimentos, ferramentas e sementes para o plantio.
Em troca teriam que pagar com um terço do melhor roçado e os outros dois terços
eram obrigados a vender para o coronel, que descontava o custo do adiantado.
Como nunca conseguiam pagar as dívidas os agregados eram reduzidos a condição
análoga à de escravos.
A consciência de que as pessoas deveriam ser tratadas como um fim em si
mesmo, e não como um meio (objetos) nunca foi alcançado por Damião ou Crispim,
que mesmo em situação de extrema pobreza, consideravam o coronel Damasceno “um
homem bom” (pág. 28). Sabiam que eram explorados e para isso só havia duas
alternativas: a resignação ou fugir. Damião resignara-se e morre, Crispim foge
e acaba como mendigo alcoólatra em União. Não há revolta entre os agregados. São
personagens inertes, incapazes de mudar a dura realidade.
A sensibilidade para reconhecer as misérias de um sistema injusto veio
com a convivência de Abedias: “O mundo começava a se apresentar a seus olhos de
modo diferente” (pág. 135). A fome e a miséria era uma doença social. Havia
coronéis nos campos e nas cidades. O poder estava por todo lugar. O mundo resumia-se
em oprimidos e opressores, “o mundo do bicho maior comendo o menor” (pág. 135).
O “despertar” de Teodoro trouxe dor e esperança. Um dia “todos os homens
seriam iguais”, como dizia Abedias, o “doutor comunista”, “não haveria mais
coronel e agregado” (pág. 222). Um dia voltaria para Piedade. O mundo, para
Teodoro, já não era mais o mesmo. Conhecera a “liberdade”, o “amor” e o ódio. Realizara
o sonho de ser vareiro, mas para a sociedade não passava de um “porco d’água”.
Teodoro Bicanca voltara a ser retirante.
Teodoro Bicanca é um romance
intenso que nos oferece uma imagem objetiva e concreta da realidade, com uma
preocupação acentuada na problemática sócio-política e existencial do seu tempo.
Destacando-se pelo pioneirismo ao tratar da condição análoga à de escravo dos
trabalhadores rurais do Piauí, realidade só oficialmente reconhecida pelo
Brasil em 1995 e ainda presente nos dias de hoje. Lembrando que a primeira
denúncia dessa situação ocorreu na década de 1960 pela Comissão Pastoral da
Terra (CPT).
Renato Castelo Branco tratou a seca como ponto de partida para a análise
das condições degradantes e restrições à liberdade do trabalhador, na cidade ou
no campo. Assim, debruçou-se na estrutura social rígida estabelecida pelos coronéis,
senhores de carnaubais e fazendas de gado na zona rural do Piauí, sem deixar de
retratar a família patriarcal da zona urbana de Parnaíba, de tradição secular,
revelando toda a simbologia de uma sociedade estagnada em seus problemas
provincianos.
Para alcançar seus objetivos o narrador não procurou fazer um tratado
sociológico ou um relato capaz apenas de reproduzir fatos, mas fez literatura,
sem deixar de mostrar sua indignação com a pobreza e desigualdades sociais. Teodoro Bicanca tem estrutura e
linguagem tradicionais, visto que retrata o Piauí da década de 30. Para isso, explorou
através da linguagem literária as sensações e os sentimentos, utilizando-se de uma
linguagem denotativa, clara, concisa, e que transita entre diferentes níveis de
expressão, destacando a coloquial e a regional sem perder o equilíbrio e a
consistência.
Teodoro Bicanca é uma obra
conservadora na sua estrutura, mas inovadora na sua temática, ao menos para a
literatura do Piauí, ao abordar o trabalho escravo e as condições degradantes
dos trabalhadores da zona rural e urbana piauienses, daí sua importância e por
isso representa um marco do modernismo na literatura piauiense, devendo ser lido por todos como forma
de compreensão da identidade cultural de seu povo.
[1] Francisco Miguel de Moura Júnior.
Graduado em Direito (UFPI). Pós-graduado em Direito Eleitoral
(UNISUL/SC), Direito e Direito Processual do Trabalho (UNIDERP/MS), Pós-graduando
em Formação de Professores para a Educação Superior Jurídica (UNIDERP/MS) e
graduando em
Ciências Contábeis (FAP Teresina).
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