quinta-feira, 15 de agosto de 2013

FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA, O QUE É ISTO?

Francisco Miguel de Moura

Escritor, membro da Academia Piauiense de Letras


      Há mais de mil formas de preconceito, a filiação socioafetiva é uma. Mesmo depois que o mundo mudou muito e com ele a família, quer na prática quer na lei, no direito. Como sou escritor, chamou-me a atenção para o problema ao ler: “Eça de Queiroz: Um caso de abandono materno e de filiação socioafetiva, as conseqüências do desamparo dos filhos no direito atual”, Edições Bagaço, Recife, 2012. Autor: Sílvio Neves Baptista. Ele se atém, de modo especial, ao caso “Eça de Queiroz”, grande escritor português, creio que até hoje o mais lido no Brasil. Dizem as más línguas que Machado de Assis tinha ciúme de Eça. Por quê? Claro que não era pela qualidade da literatura, mas porque o escritor português (e ambos viveram a mesma época) era muito mais lido aqui no Brasil do que o “Bruxo do Cosme Velho”. 
   
   Na contracapa do livro está escrito: “O abandono da parte do pai ou da mãe desestrutura emocionalmente os filhos, e faz com que eles manifestem, ao longo da vida e através de diferentes modalidades comportamentais, tudo aquilo que eles sofreram na infância e adolescência. Não raro são os filhos vítimas do fracasso escolar ou do uso imoderado do álcool ou de drogas, além de nutrirem sentimentos de ódio, angústia e mágoa.” E é a pura verdade.

     O livro de Sílvio Neves Baptista trata muito mais das divergências sobre o lugar do nascimento de Eça (José Maria) e sobre o seu batismo (que equivalia ao registro de nascimento), efetuado sem a presença do pai, nem da mãe, nem de nenhum parente, levado que foi à pia batismal por uma criada. Transcreve o assento do batismo daquele que viria a ser o maior estilista da língua, além de jornalista, advogado e diplomata: “José Maria, filho natural de José Maria d’Almeida Teixeira de Queiroz e de Mãe Incógnita...” Paro aqui, pois acho mais esclarecedor outro documento: A carta que foi entregue ao prior Domingos da Soledade Sillos, com ordem de que fosse apensa ao registro do batismo: “Senhora: Ponte de Lima, 18 de novembro de l845. Recebi carta do meu pai, que novamente me recomenda a criação do meu filho e se me oferece para mandá-lo criar no Porto, em companhia de minha família, quando a Senhora nisto convenha. Ele me recomenda igualmente – e eu também o desejo – que no assento do Batismo se declare ser meu filho, sem todavia se enunciar o nome da mãe. Isto é essencial para o destino futuro de meu filho: e para que, no caso de se verificar o meu casamento consigo – o que talvez haja de acontecer brevemente – não seja preciso, em tempo algum, a justificação de filiação. Espero se ponha ao nosso filho o meu nome ou o seu, conforme deva ser. Adeus – Acredite sempre nas minhas sinceras tensões e agora mais do que nunca. “Queiroz”.

    Logo em seguida, Eça foi entregue aos cuidados da costureira pernambucana e sua madrinha, Ana Joaquina Leal de Barros, casada com o alfaiate Antônio José Fernandes do Carmo. Ana Joaquina é a referência feminina maior na criação de Eça.    Note-se que, no transcurso de sua vida,
Recife tornou-se uma cidade que o admirava e amava. Durante o tempo em que morou em Recife, consta que foi até votado candidato a vereador e também uma marca de cigarros recebeu seu nome, registra um dos seus biógrafos. Entretanto, ele voltou para Portugal, foi morar com parentes ou estudar. O casamento de Dr. Queiroz com Carolina Augusta Pereira d’Eça se deu depois de quatro anos do nascimento do menino registrado como se sua mãe fosse ignorada. Aí ele deve tê-la conhecido. Era o que se chama de filho ilegítimo, agora legitimado. Filiação socioafetiva. Por quê? Para quê?  Tudo por causa dos preconceitos da sociedade daquele tempo, que foram rigorosamente cumpridos pelo pai e avô, como se a lei valesse mais do que a realidade. Minha mãe, na sua sabedoria popular, me dizia: “Meu filho, há casos que podem mais do que a lei”.

     Rosa Montero, citada por Fátima Quintas, considera os escritores em dois tipos: memoriosos e amnésicos. E coloca Eça no último caso. Não entro no mérito da classificação, mesmo porque os romances “O Primo Basílio” e “Os Maias”, de Eça, são ressonâncias de um namoro dele com uma irmã de criação, que a família não consentiu no casamento. 

     Pai e mãe são importantes na vida e memória do filho, sendo assim não vejo nenhuma graça em certas adoções que estão sendo criadas pela sociedade brasileira. Na forma natural (sendo depois legalizada diante da Justiça), a adoção se tornou uma coisa comum, por isto que não há mais filho adotivo, legitimado, criado ou coisa que o valha: todos os filhos são registrados sem acréscimo de adjetivo. São legítimos. Mas os problemas sócioafetivos continuam, eles conduzem os adotados aos mesmos problemas de todo ser humano: Quem é? De onde vim? Para onde irei?

      Como vimos, a filiação sócioafetiva (ou adoção, em linguagem menos modista) nunca foi nem será fácil de entender-se e muito menos de explicar-se ao interessado maior, o filho.

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