sábado, 1 de novembro de 2014

PONETE À ESPERA DE UM ANJO

Alexandre Bonafim*


        Queridos amigos, recentemente, ao ler o belo e terrível livro do filósofo francês Marcel Conche, chamado “Orientação filosófica”, fiquei consternado perante o seu ensaio, em que ele defende a dor das crianças como um mal absoluto. O que fazer diante dos meninos e meninas em dor aguda e pungente? O filósofo simplesmente nos afirma que o homem, empedernido nas paredes de seu ego-ísmo, suplanta essa dor, pois é de sua natureza buscar a satisfação e a felicidade em sua vida. Portanto, Marcel Conche nos condena: somos seres criados pela insensibilidade. Fiquei chocado com isso, mas fortalecido em minha humanidade. Sempre tive repúdio pela felicidade dos tolos, dos medíocres, dos amantes de shopping, de carro novo, de sapatos lustrosos a redimirem a culpa, anestesiada perante a dor crucial, terrível, rascante, do outro, do outro criança. Por isso eu sempre admirei o desassossego como um sentimento a reluzir, no seu fundo, o sagrado terrível.
        Por sentir a força desses pensamentos, lembrei-me do belíssimo filme de Jacques Doillon, “Ponette à espera de um anjo”. Tocado pela belíssima interpretação da Victoire Thivisol, escrevi essa suíte de sete versos, numa tentativa de compreender a dor absoluta das crianças, a dor mais humana de todas.
           Abraço para todos.

Ponette à espera de um anjo
a Victoire Thivisol e Jacques Doyllon

I
O rosto da menina, perenemente
iluminado pelos nascimentos,
volta-se contra a morte,
numa cegueira a enraizar-se em Deus.

O que pode a dor
contra a inocência?
Qual lâmina poderá colher
o riso de uma criança?

Se a morte crava seu coração
em sete espinhos,
se o pranto constela sua alma
em sete chagas,
despida pela inocência,
a menina abraça sua fragilidade,
perdoando as estrelas,
abençoando Deus nas linhas
de suas frágeis mãos.

Os nascimentos batizam a esperança
nas sete chagas dessa noite.


II
À espera de um anjo,
a menina desarvora a noite,
apascenta as lágrimas
das crianças,
perdoa a morte
da infância.

À espera de um anjo,
a menina desenha colibris
no silêncio do luto,
fecunda um arco-íris,
onde tudo perece,
onde os sonhos morrem.

À espera de um anjo,
a menina abraça a inocência,
a delicadeza dos milagres,
e desnudada pelo nascimento
das estrelas, pela eternidade
da infância mais frágil,
ela rompe os muros,
desfaz os túmulos,
corta a morte,
para entregar-se
ao silêncio dos sonhos.

À espera de um anjo,
a menina acende
o perfume das rosas
onde a esperança
se esboroa no nada,
onde o amor
se corta nas feridas.

À espera de um anjo,
a menina faz da ausência
um cântico de louvor,
uma sinfonia de orvalho.
No final de cada uma
de suas lágrimas,
uma anjo canta,
silenciosamente,
a ressurreição
das flores mortas.

À espera de um anjo,
a menina abraça a mãe
de toda criança perdida.


III
Há um anjo a desfazer
a chaga em música,
a esboroar a ferida
em pólen...

Por isso toda mãe
que um filho perde
não chora lágrimas,
mas pétalas;
não grita saudade,
mas perfume.

A ressurreição das manhãs
desfaz os espinhos em notas
de uma delicada sinfonia.

Há um anjo
a raiar a lua na manhã,
a tecer o sol no eterno.

É a menina vinda do clamor
dos sonhos, do olor dos rosais,
do cântico das pétalas,
a espargir na morte
o fulgor do verão.

Por conhecer a dor
pela entranha,
por saber a lágrima
pelo íntimo do sal,
a menina é mãe
dos órfãos, filha
do louvor da infância.

Ponette, irmã dos frutos,
filha do orvalho,
arcanjo dos nascimentos,
desfaz a ferida em música,
esboroa a chaga em pólen.

Por isso toda mãe
que um filho não teve,
não grita saudade,
mas sussurra anjos;
não chora espinhos,
mas diz ressurreições.

É a menina mãe
de toda mãe em agonia,
música a nascer das lágrimas.


IV
Ponette cava a terra,
quebrando o braço contra a morte.
Sua mãe jaz no fundo de uma lágrima,
no silêncio mais fecundo.
A menina, no entanto, não desiste.
Quer verter o amor da pedra!
Quer brotar a vida do nada!
Na ponta dos seus dedos nascem fontes,
germinam colibris.
No cerne sem fim da terra,
há um espelho a refletir
seu rosto no eterno.
Ponette cava o chão,
florescendo suas mãos numa manhã
mais vasta que todo sol.
Na noite desse mistério,
no oco dessa ausência,
uma semente de estrelas
amadurece as ressurreições.


V
Nesse quarto -  ninho de esquecimentos –
pousa uma andorinha
em cada lágrima da menina.
As asas tecem com o sal da morte
sementes de arco-íris,
pétalas de uma sinfonia
a espargir perfumes
no rosto límpido da inocência.
Ponette sussurra
as mais leves palavras
para o frio das paredes,
para o silêncio das lápides.
No fundo das pedras,
ela tece o rosto de Deus,
o olhar de um poema
mais fecundo que toda palavra.
Nesse quarto – ninho de esquecimentos –
uma andorinha pousa sobre a dor.
A menina adormece nos milagres.

VI
Veio com os cabelos esbatidos
pelas galáxias e as estrelas.
Trazia no rosto o despertar
dos girassóis, as palavras
jamais escritas.
Não nasceu da terra,
nem da morte,
surgiu da última lágrima,
dos sonhos tecidos
pelo orvalho e a solidão.
Nasceu do primeiro dia
do mundo, da eternidade
a semear pássaros no silêncio.
Veio sem anúncios e presságios,
contornada pelos desastres,
desenhada pelas tempestades.
Veio do instante da delicadeza
e pousou um manto de sinfonias
sobre os ombros de uma orfandade
sem repouso.

VII
Quando a menina viu o anjo,
a morte por todo o sempre
esqueceu-se da infância,
abandonou a mão das cirandas.
A partir desse momento de asas e vôos,
criança nenhuma jamais saberá
o corte de silêncios partidos,
a lâmina de dores cortadas.
A morte adormeceu serenamente
onde a eternidade sempre nasceu.
Estava perdoado o que de humano
se fizera vida, o que de dor se fizera homem.
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E-Mail: Francisco Miguel, é um grande prazer ter recebido seus e-mails e os acompanhado. Aproveito o ensejo para divulgar alguns textos meus. Vamos mantendo nosso intercâmbio.
Grande abraço do  Alexandre Bonafim.
 





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